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Vicente Alencar

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A POLÍTICA E O ROMANTISMO - Fortaleza, 3/11/22. Rui Martinho Rodrigues.

 

A POLÍTICA E O ROMANTISMO

O romantismo teve grande expressão no séc. XVII, destacadamente na Alemanha. Entre as suas caraterísticas são assinaladas sensibilidade, exaltação, paixão, arrebatamento, devaneio, narrativa imaginosa, tendência onírica sobreposta ao espírito crítico e a razão, ênfase no subjetivismo (Dicionário Houaiss da língua portuguesa). O titanismo, representado pelos titãs que se revoltaram contra os deuses, é um espírito de revolta típico do herói romântico.

Massaud Moisés (1928 – 2018) ressalta a diversidade semântica do vocábulo, que de tanto significar tudo acabou nada significando. Os aspectos enumerados por Houaiss explicam a diversidade de significados. A subjetividade, a paixão prevalecendo sobre a razão e a imaginação rebelde podem produzir as mais diferentes atitudes. Desde o liberalismo até o revolucionarismo totalitário (ideia que encontrou suas baionetas) e liberticida têm relação com o romantismo.

Os traços românticos encontrados nos movimentos políticos contemporâneos revelam a influência dessa tradição (Isaiah Berlin, 1909 – 1997, na obra Ideias políticas na era romântica). Aqui formulamos entendimento afim ao do autor citado sem meramente repeti-lo. Tendências românticas podem ser compartilhadas com correntes distintas do romantismo, diversamente do que diz Berlin. A imaginação despreocupada com a reserva do possível já estava presente no pensamento grego do período clássico. Platão (428/427 a.C.– 348/347 a.C.), na obra A República, viajou nas asas da imaginação, conforme reconheceria mais tarde, na obra As leis.

Os sucessivos fracassos das tentativas de reengenharia social e antropológica não desanimam os revolucionários, o que revela um traço do titanismo. A revolta contra o mundo real tem levado ao negacionismo quanto ao conceito verdade objetiva e até de verdade lógica. O relativismo e o perspectivismo se fortaleceram, de modo algo semelhante aos sofistas. É o desprezo romântico pela realidade, por maiores que sejam os desastres que isso possa produzir. Doutrinas cavilosas que refletem o que Raoul Girardet (1917 – 2013), na obra Mitos e mitologias políticas, identifica com o pensamento mítico.

Podemos acrescentar que a ideia de um passado remoto paradisíaco, como uma idade de ouro, espécie de Éden, uma comuna primitiva; seguido por uma queda decorrente de um pecado original, que pode ser a apropriação da propriedade privada, com o consequente surgimento da desigualdade (Jean-Jacques Rousseau, 1712 – 1778, na obra A origem da desigualdade entre os homens). Imaginação tão solta sugere a presença de um traço romântico, presente em obras e na militância revolucionária.

O sentimento exacerbado de inquietude e inconformidade com a realidade social, que lembra o Mal-estar na sociedade, de Sigmund S. Freud (1856 – 1939), ao modo de uma projeção de conflitos íntimos ou pessoais na sociedade, também está presente nas utopias indicando mais um traço romântico.

A paixão exaltada, outro componente romântico, presente no clima de polarização e de intolerância, evidencia a ferocidade potencial do romantismo. Igualdade, liberdade e fraternidade, imaginação onírica romanticamente amorosa e doce, ironicamente uma fraternidade da guilhotina, decepando milhares e milhares de cabeças. O reinado do terror do período jacobino é uma expressão da ferocidade romântica, repetida na experiência genocida do Khmer Vermelho, quando o Partido Comunista do Camboja dominou aquele país; nos rigores da atual dinastia norte coreana que por três gerações domina aquele país e todas as ditaduras que acenam com utopias e terminam em distopias.

A síntese de utopia com distopia é facultada pela dialética hegeliana herdada pelos revolucionários, que Lucio Colletti (1924 – 2001) dizia ser uma senhora de costumes cognoscitivos fáceis. A licenciosidade epistemológica nomeada por Karl R. Popper (1902 – 1994) como vanilóquio, pretende que os conceitos e valores sejam meros instrumentos de dominação (Michel Foucault, 1926 – 1984). A paixão e o voluntarismo axiológico e cognitivo são afins ao subjetivismo romântico e produzem a logomaquia que desorienta. Pretende que subjetividade, desejo e sensibilidade sejam fundamento de validade para direitos exigíveis contra terceiros.

Assim, uma “mulher trans” (homem biológico com sensibilidade, desejos e comportamento de mulher) pode exigir concorrer com mulheres “cis” (mulher biológica) nas competições esportivas, resultando na perda bolsas pelas mulheres “cis”, nas universidades americanas, por serem superadas pelo desempenho atlético das “mulheres trans” (Gazeta do Povo, 07/06/2020). O “direito” de partilhar banheiros femininos pode assim ser imposto. Embora exista o direito de não ser escandalizado (Norberto Bobbio, 1909 – 2004, na obra A era dos direitos), as mulheres “cis” são compulsoriamente escandalizadas em seus banheiros. Uma “mulher trans”, condenada e cumprindo pena em presídio feminino, engravidou duas mulheres “cis”, tendo de ser removida para um presídio masculino (globo.com G1, 18/07/22). Uma anedota em que uma “mulher trans” exige ser atendida por médico ginecologista expressa a pitoresca e trágica desorientação.

Negar a existência de uma natureza ligada a essência, não inteiramente disponível aos desígnios volitivos e à dinâmica histórica das culturas, contraia a evidenciada atestada pela atualidade dos conflitos humanos registrados na mitologia grega de três mil anos. É uma forma de negacionismo. O voluntarismo romântico pode instaurar a ferocidade resultante da anomia, do não reconhecimento da universalidade de algum tipo de normatividade social necessária a convivência civilizada.

Fortaleza, 3/11/22.

Rui Martinho Rodrigues.

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