Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

quinta-feira, 30 de março de 2023

O ANIMAL DE REBANHO Fortaleza, 30/3/23. Rui Martinho Rodrigues

 O ANIMAL DE REBANHO


Abelhas e formigas são animais sociais. Suas sociedades têm (i) divisão

social do trabalho, inclusive da tarefa reprodutiva e (ii) uma estratificação social típica

do sistema de castas. Eram classificadas pelos velhos e bons manuais de Biologia como

sociedades coletivistas, hoje havidas como “eusociedades” dotadas de “funcionamento

perfeito” e “amistosas”, embora formigas e abelhas não sejam tão pacíficas nem o

sistema de castas perfeito. Nelas o indivíduo serve à sociedade, não o contrário.

“Perfeito funcionamento”, no caso, é juízo de valor no qual o indivíduo não é

importante. A funcionalidade sem inovação também não é tão perfeita.


Leões e elefantes formam sociedades individualistas, sem divisão social do

trabalho e sem estratificação social, renomeadas como “subsociedades”, indicando uma

revisão valorativa da nomenclatura, para a qual a independência dos membros de uma

sociedade indica uma condição mais primitiva e inferior. Mas o individualismo, salvo

quando exacerbado, não significa conduta ou sentimento antissocial, nem uma

imperfeição funcional. Ressalta apenas a primazia do indivíduo. Nas sociedades

individualistas o indivíduo não existe em função da sociedade, mas a sociedade em

função do indivíduo, assim como “o sábado foi feito por causa do homem; e não o

homem por causa do sábado” (Marcos. 2;27).


A visão do homem como animal político (Aristóteles, 384 a.C.– 322 a. C),

nos coloca um passo além dos animais sociais, acima dos seus padrões repetidos. A

aptidão política está na origem do processo democrático, quando os gregos adotaram o

debate de ideias como método decisório nos negócios da polis, substituindo a força

(Olivier Nay, na obra História das ideias políticas). Política guarda relação, entre outras

coisas, com o uso da razão.


O ignorante afirma, o sábio duvida e o sensato reflete. Isso resulta das

diferentes manifestações da racionalidade, nem sempre perfeitas. A “lei” 80 e 20, de

Vilfredo Pareto (1848 – 1923) descreve o fenômeno em que vinte por cento dos fatores

produzem oitenta por cento dos resultados. A razão praticada pelo animal político

parece corresponder ao descrito pela mencionada “lei”. Não falemos nos números de

Pareto. Reconheçamos, porém, que graves equívocos influenciam poderosamente a

história. Barbara W. Tuchman (1912 – 1989), na obra A marcha da insensatez, relata

numerosos exemplos de decisões desastrosas, citando apenas as que foram tomadas por

governos abertos aos críticos.


Ser animal político não exclui comportamento de rebanho. Líderes exercem

enorme influência sobre as massas. A tecnologia ampliou o alcance do poder de

manipulação das pessoas. Os tipos weberianos de liderança incluem a tradicional

(inercial); a carismática (pessoal, emocional, pela identificação dos liderados com o

líder) e a racional legal (normatividade impessoal) convive agora com um quadro mais

complexo.


Os meios de comunicação potencializaram o poder dos (de)formadores de

opinião. A imprensa contribuiu para o relativo sucesso das reformas protestantes do

século XVI. A Revolução Francesa contou com os jornais impressos e as enciclopédias.

A era do rádio “coincidiu” com uma “safra” de líderes, como Haya de la Torre, Vargas,

Peron, Mussolini, Hitler.


As tecnologias digitais criaram uma tribuna franca, democratizaram o

debate, quebraram o monopólio da mentira e da manipulação. Impactaram tão

fortemente que os vaqueiros da boiada cidadã, outrora inimigos da censura, passaram a

justifica-la. O mercado político tornou-se concorrencial. Adversários do livre mercado e

da concorrência querem o “ministério da verdade” profeticamente descrito por Georg

Orwell (1903 – 1950), na obra 1984.


Herdeiros dos reis filósofos (Platão, 428 a.C.– 348 a.C.) projetam uma

sociedade perfeita, ao modo das “eusociedades”. Mas não se constrangem em apregoar

o individualismo radical, próximo do solipsismo. Promovem o rompimento dos laços

propostos pelos conservadores: família, pátria, igrejas e rejeitam o limite dos direitos

individuais formado apenas pela alteridade sugerido pelos liberais. A guerra híbrida

entre ideologias instrumentalizadas pelas grandes potências promove o tráfico de drogas

psicoativas. No México a participação de uma embaixada no tráfico evidenciou o que o

ex-agente de um serviço secreto havia dito há décadas: trata-se de guerra.


A engenharia social inspirada nos insetos coletivistas e o individualismo

exacerbado, próximo do solipsismo, que só reconhece a individualidade hedonista, se

harmonizam. A senhora de costumes cognoscitivos fáceis (Lucio Colleti, 1924 – 2001),

também conhecida como dialética, harmoniza a contradição. Tribos urbanas identitárias

podem ser coletivistas apesar de exaltarem a fragmentação social e denunciarem grupos

sociais básicos como família e nação. Destruídas as estruturas de apoio e de controle

social restará o Estado controlado pelos partidários da engenharia social e

antropológica.


As redes sociais despertam ódio, não pela mediocridade ou pelas mentiras,

mas por desfazer o trabalho de três gerações, que levou ao domínio do que Louis

Althusser (1918 – 1990) e Antonio S. F. Gramsci (1991 – 1937) consideravam

“aparelhos ideológicos”: escolas, indústria cultural e meios de comunicação social em

geral. Concluída a conquista de tais “aparelhos”, os demiurgos do bem dominavam

totalmente a cultura. Então a tecnologia digital estragou tudo.


O povo deve ser soberano, se executar as instruções dos reis filósofos. Dois

livros de Lênin (Vladimir I. Ulianov, 1870 – 1924) expõem o duplipensar denunciado

por Orwell. São eles: O Estado e a revolução, uma pregação anarquista defendendo

todo poder aos soviets (conselhos populares com poderes legislativos e executivos) e O

que fazer, em que defende todo o poder para os dirigentes revolucionários. A dialética

pode fazer a síntese entre o círculo e o quadrado.


O povo, para eles, deve ser o laicato, submisso ao comitê central, verdadeira

cúria metropolitana dos “esclarecidos”. É heresia das redes sociais desafiar a

infalibilidade dos guias. George Amado (1912 – 2001) já denunciava a “inquisição” dos

líderes com atitude de cruzados, inclusive no cometimento de barbaridades.


Fortaleza, 30/3/23.

Rui Martinho Rodrigues

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