METAMORFOSES
DA CONSCIÊNCIA
As
consciências, tanto individuais como coletivas, passam por transformações
significativas. A política e o Direito têm se mostrado extremamente vulneráveis
a tais mudanças. A complexidade crescente da vida em sociedade deixou fora do
alcance do homem comum – e até de especialistas – coisas como matriz
energética, reforma tributária, política monetária, sanitária, criminal e
muitas outras áreas da administração pública e do conhecimento humano. Mas a má
política foi primeiro a arte de impedir as pessoas de se intrometerem no que
lhes concerne. Em época posterior, acrescentaram-lhe a arte de forçar as
pessoas a decidir sobre o que não entendem (Paul Valéry, 1871 – 1945).
O
voto continua sendo uma permissão indispensável à legitimidade dos governos,
como queria John Locke (1632 – 1704). Trata-se de um consentimento baseado mais
na confiança ou na paixão do que no conhecimento concernente ao conteúdo da
outorga dada pelo eleitor. O núcleo do ordenamento jurídico e político havido
como democracia passou a ser um conjunto de garantias individuais, nos termos
das declarações de direitos do século XVIII. A modernidade proclamou a
liberdade de todos os homens, oferecendo diversas garantias individuais.
As
citadas garantias individuais são a expressão da desconfiança democrática que
incide sobre as autoridades. A limitação dos mandatos eletivos no tempo, o
princípio da publicidade dos atos administrativos e judiciais, do duplo grau de
jurisdição e o sistema de freios e contrapesos são exemplo da desconfiança
aludida. Desconfiar das autoridades é um dever de cidadania e não se confunde
com ataque às instituições democráticas, sendo antes uma forma de protege-las.
A
reserva legal, que impede a criminalização de condutas sem lei anterior que a defina
e pena sem prévia cominação legal (CF/88, art. 5º, inc. XXXIX) é outra das
garantias aludidas. Não é possível criar tipos penais por analogia ou por outro
meio que não seja a lei. O princípio do juiz natural (CF88, art. 5º, inc. LIII)
é destinado a garantir o cumprimento das normas de competência e a imparcialidade
do órgão julgador. Juiz competente deve ser o da instância competente, cabendo
aos tribunais o julgamento dos réus que tenham foro especial por prerrogativa
de função e o juiz de primeiro grau deverá julgar réus sem tal prerrogativa. A
imparcialidade do magistrado é protegida ainda nas hipóteses de suspeição (art.
145 do CPC) e de impedimento (art. 252 do CPC). Um magistrado emocionalmente
envolvido, que chora em face das agruras impostas pelo processo a uma das
partes não tem isenção para julgar. A distribuição aleatória dos processos visa
impedir que seja escolha do juiz. Assim se evitam as motivações de interesses
pessoal. E mais uma garantia de imparcialidade do órgão julgador. O mesmo sentido
tem a inércia da magistratura, que só pode agir quando provocada.
A
persecução penal foi afastada da função judicante, ficando como prerrogativa do
Ministério Público (CPP, art. 28 – A) para que o acúmulo de atribuições não
transforme a magistratura em um poder absoluto. Um juiz ou tribunal que assuma
a iniciativa da persecução penal, mormente quando contrariando parecer do MP
está infringindo a normatividade processual.
A
transição da modernidade para a sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1925 – 2017)
ou pós-modernidade, fragilizou a ideia de universalidades. Os direitos
individuais comuns a todos os homens foram ultrapassados pela prioridade dada
aos grupos identitários típicos da fragmentação pós-moderna. Embora a crítica
ao caráter abstrato dos direitos individuais universais tenha se fortalecido,
conceitos indeterminados e igualmente abstratos, como justiça, ainda que adjetivada
como social, também foram fortalecidos.
A
contradição ínsita na dialética de Georg W. F. Hegel (1770 – 1831), apropriada
pelos progressistas, viabilizou a permissividade epistemológica desempenhando o
papel de senhora de costumes cognoscitivos fáceis, nas palavras de Lucio
Colletti (1924 – 2001). Assim podemos dizer que a censura não é admitida em
hipótese alguma, mas pode ser adotada excepcional e temporariamente como
inexistente, mas juridicamente válida, síntese perfeita da logomaquia
denunciada por Karl R. Popper (1902 – 1994) no discurso da síntese dos
contrários. Condenar abstração para legitimar a justiça concebida pelo órgão
julgador, sem representatividade política, social e cultural, alegando a
singularidade do caso concreto tropeça na inexistência de fenômeno social
inédito, parecendo mais um vanilóquio.
A
metamorfose dos significados confere grande liberdade à subjetividade do órgão
julgador. As constituições analíticas, dirigentes e totais, protegidas ainda
pela positivação de princípios de larga abrangência limitada apenas pelo
entendimento pessoal da autoridade e pela obrigação de fundamentar o
entendimento expresso na decisão, levou ao ativismo judicial, diverso do
decisionismo político amparado na representação popular.
O
controle concentrado de constitucionalidade e a Nova Hermenêutica
constitucional ampliaram o poder dos tribunais constitucionais, ainda que não
exerçam apenas esta função. O advento da inconstitucionalidade por omissão
ensejou a oportunidade dos tribunais mencionados se transformarem em casa
legislativa, valendo-se da prerrogativa de errar por último, como órgão
supletivo do Poder Legislativo. O acumulo da função de tribunal constitucional
com a função de tribunal penal pode colocar o Legislativo sob controle do
tribunal aludido. A concentração de poder é vista pela óptica da desconfiança
democrática, não quanto a máquinas, mas no tocante aos seus operadores. Lord
John Dalberg-Acton (1834 – 1902) advertiu-nos dizendo que o poder corrompe e o
poder absoluto corrompe de modo absoluto.
A
democracia tem instrumentos de autodefesa. Mas quando é atacada desde dentro
das suas instituições, quando os titulares dos órgãos exercem o poder
ultrapassando os limites da competência constitucional que lhes foi dada, não
temos previsão de procedimento democrático. Desde Tomás de Aquino (1225 –
1274), passando John Locke (1632 – 1704) pensadores de escol têm defendido o
direito de resistência ou rebelião, quando os governantes ultrapassem os
limites da outorga que lhes foi dada para governar e não reste aos governados
outro meio de defesa em face da arbitrariedade e do abuso de poder.
Fortaleza,
18/11/22.
Rui
Martinho Rodrigues.
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