A POLÍTICA E O ROMANTISMO
O romantismo teve grande expressão no
séc. XVII, destacadamente na Alemanha. Entre as suas caraterísticas são
assinaladas sensibilidade, exaltação, paixão, arrebatamento, devaneio,
narrativa imaginosa, tendência onírica sobreposta ao espírito crítico e a
razão, ênfase no subjetivismo (Dicionário
Houaiss da língua portuguesa). O titanismo, representado pelos titãs que se
revoltaram contra os deuses, é um espírito de revolta típico do herói
romântico.
Massaud Moisés (1928 – 2018) ressalta a
diversidade semântica do vocábulo, que de tanto significar tudo acabou nada
significando. Os aspectos enumerados por Houaiss explicam a diversidade de
significados. A subjetividade, a paixão prevalecendo sobre a razão e a
imaginação rebelde podem produzir as mais diferentes atitudes. Desde o
liberalismo até o revolucionarismo totalitário (ideia que encontrou suas
baionetas) e liberticida têm relação com o romantismo.
Os traços românticos encontrados nos
movimentos políticos contemporâneos revelam a influência dessa tradição (Isaiah
Berlin, 1909 – 1997, na obra Ideias
políticas na era romântica). Aqui formulamos entendimento afim ao do autor
citado sem meramente repeti-lo. Tendências românticas podem ser compartilhadas
com correntes distintas do romantismo, diversamente do que diz Berlin. A
imaginação despreocupada com a reserva do possível já estava presente no
pensamento grego do período clássico. Platão (428/427 a.C.– 348/347 a.C.), na
obra A República, viajou nas asas da
imaginação, conforme reconheceria mais tarde, na obra As leis.
Os sucessivos fracassos das tentativas
de reengenharia social e antropológica não desanimam os revolucionários, o que
revela um traço do titanismo. A revolta contra o mundo real tem levado ao
negacionismo quanto ao conceito verdade objetiva e até de verdade lógica. O
relativismo e o perspectivismo se fortaleceram, de modo algo semelhante aos
sofistas. É o desprezo romântico pela realidade, por maiores que sejam os desastres
que isso possa produzir. Doutrinas cavilosas que refletem o que Raoul Girardet
(1917 – 2013), na obra Mitos e mitologias
políticas, identifica com o pensamento mítico.
Podemos acrescentar que a ideia de um
passado remoto paradisíaco, como uma idade de ouro, espécie de Éden, uma comuna
primitiva; seguido por uma queda decorrente de um pecado original, que pode ser
a apropriação da propriedade privada, com o consequente surgimento da
desigualdade (Jean-Jacques Rousseau, 1712 – 1778, na obra A origem da desigualdade entre os homens). Imaginação tão solta
sugere a presença de um traço romântico, presente em obras e na militância
revolucionária.
O sentimento exacerbado de inquietude e
inconformidade com a realidade social, que lembra o Mal-estar na sociedade, de Sigmund S. Freud (1856 – 1939), ao modo
de uma projeção de conflitos íntimos ou pessoais na sociedade, também está
presente nas utopias indicando mais um traço romântico.
A paixão exaltada, outro componente
romântico, presente no clima de polarização e de intolerância, evidencia a
ferocidade potencial do romantismo. Igualdade, liberdade e fraternidade,
imaginação onírica romanticamente amorosa e doce, ironicamente uma fraternidade
da guilhotina, decepando milhares e milhares de cabeças. O reinado do terror do
período jacobino é uma expressão da ferocidade romântica, repetida na
experiência genocida do Khmer Vermelho, quando o Partido Comunista do Camboja
dominou aquele país; nos rigores da atual dinastia norte coreana que por três
gerações domina aquele país e todas as ditaduras que acenam com utopias e
terminam em distopias.
A síntese de utopia com distopia é
facultada pela dialética hegeliana herdada pelos revolucionários, que Lucio Colletti
(1924 – 2001) dizia ser uma senhora de costumes cognoscitivos fáceis. A
licenciosidade epistemológica nomeada por Karl R. Popper (1902 – 1994) como
vanilóquio, pretende que os conceitos e valores sejam meros instrumentos de
dominação (Michel Foucault, 1926 – 1984). A paixão e o voluntarismo axiológico
e cognitivo são afins ao subjetivismo romântico e produzem a logomaquia que
desorienta. Pretende que subjetividade, desejo e sensibilidade sejam fundamento
de validade para direitos exigíveis contra terceiros.
Assim, uma “mulher trans” (homem
biológico com sensibilidade, desejos e comportamento de mulher) pode exigir
concorrer com mulheres “cis” (mulher biológica) nas competições esportivas,
resultando na perda bolsas pelas mulheres “cis”, nas universidades americanas,
por serem superadas pelo desempenho atlético das “mulheres trans” (Gazeta do Povo, 07/06/2020). O “direito”
de partilhar banheiros femininos pode assim ser imposto. Embora exista o direito
de não ser escandalizado (Norberto Bobbio, 1909 – 2004, na obra A era dos direitos), as mulheres “cis”
são compulsoriamente escandalizadas em seus banheiros. Uma “mulher trans”,
condenada e cumprindo pena em presídio feminino, engravidou duas mulheres
“cis”, tendo de ser removida para um presídio masculino (globo.com G1, 18/07/22). Uma anedota em que uma “mulher trans”
exige ser atendida por médico ginecologista expressa a pitoresca e trágica
desorientação.
Negar a existência de
uma natureza ligada a essência, não inteiramente disponível aos desígnios
volitivos e à dinâmica histórica das culturas, contraia a evidenciada atestada
pela atualidade dos conflitos humanos registrados na mitologia grega de três
mil anos. É uma forma de negacionismo. O voluntarismo romântico pode instaurar
a ferocidade resultante da anomia, do não reconhecimento da universalidade de
algum tipo de normatividade social necessária a convivência civilizada.
Fortaleza, 3/11/22.
Rui Martinho Rodrigues.
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