A INTERDIÇÃO DOS CIDADÃOS
A pós-modernidade abalou conceitos que
haviam adquirido clareza. Teorias articulavam, segundo a lógica aristotélica,
conceitos bem delimitados. A sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1926 – 2017, em
obras como Modernidade líquida, Amor líquido; e Tempos líquidos), porém, abandonou o rigor epistemológico. Cidadania
e a capacidade civil sofrem erosão semântica e consequentemente política e
jurídica, típica do descompromisso e da instabilidade ressaltadas pelo autor
citado. A presunção de capacidade para os atos da vida civil é um requisito
indispensável à cidadania. Incapazes não estão aptos a escolher entre programas
de governo ou concepções políticas, tampouco têm capacidade para o exercício de
funções públicas.
Interdição, “...exprime (...) toda
proibição relativa à prática ou execução de certos atos, ou a privação de
certas faculdades (...) torna defeso a prática de um ato ou o exercício de um
direito. (...) em face de fatos que a lei considera como geradores de uma capitis deminutio, tais como demência, e
a prodigalidade. (...). Decorre de uma condenação penal, por crime infamante ou
(...) como pena acessória (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico).
A interdição por incapacidade exige
cuidados de alguém. A lei determina que alguém preste apoio ao incapaz (um curador).
A interdição penal tem a proteção do Ministério Público, comparável a um
curador na interdição civil.
A proteção dos cidadãos tem sido centro
de preocupações políticas. O uso de capacete pelos motociclistas e o cinto de
segurança pelos passageiros de veículos é uma medida de proteção efetiva,
conforme dados estatísticos incontestáveis. Tais equipamentos de proteção
individual devem ser usados. Eles protegem unicamente o usuário. Deixar de
usa-los não afeta diretamente o interesse de terceiros. O uso compulsório de
tais equipamentos significa que a liberdade alguém que deveria ser limitada
apenas pelos direitos de outrem, está sendo abalada sem que terceiros sejam
prejudicados. O casamento após os sessenta anos só pode ser sob o regime de
separação total de bens. Proibir motoristas e motociclistas de andar sem cinto
de segurança ou sem capacete e maiores de sessenta anos de casar em comunhão de
bens são formas de interdição. Têm o significado de declarar a incapacidade das
pessoas. Ao fiscalizar tais condutas o Estado assume o papel de curador e reduz
o cidadão à condição de curatelado ou condenado penalmente.
O Direito Penal como ultima ratio é uma concepção minimalista
que está sendo abandonada. Um limite imposto pelo minimalismo penal é a não
criminalização de situações que configurem perigo abstrato. Está sendo
contestado, a exemplo da restrição do direito de acesso a um meio de defesa. Perigo
abstrato é aquele que só se configura quando se imagina alguma hipótese
adicional. Automóvel é perigo abstrato se agregarmos a hipótese do motorista
embriagado. Bicicletas, piscinas, remédios e quase tudo pode ser um perigo
abstrato. Criminalizar tal forma de perigo tornaria quase tudo crime.
Cidadania exige capacidade. Incapaz não
vota (capacidade eleitoral ativa) nem pode ser votado (capacidade eleitoral
passiva) nem pode exercer função pública. Não há democracia sem o
reconhecimento da capacidade dos cidadãos. Tal reconhecimento não pode conviver
com a institucionalização de restrições. Quem é capaz de decidir se deve usar
capacete quando anda de motocicleta, cinto de segurança quando anda em carro, o
regime de bens do casamento, possuir um meio de defesa, reagir ou não ao ataque
de um ladrão, tal pessoa não tem aptidão para a cidadania, do contrário não
deveria ser proibido ou obrigado em relação a essas e outras coisas. Decisões
políticas são muito mais complexas. Invertendo o brocardo forense segundo o
qual quem pode mais, pode menos (a
maiori, ad minus), podemos afirmar que quem não pode menos, não pode mais.
O Estado curador,
somado aos ex-cidadãos curatelados (reconhecidos como incapazes) é uma forte
tendência atual. Mas assinala um caminho da servidão distinto daquele foi
objeto da advertência de Friedrich August von Hayek (1899 – 1992) na obra O caminho da servidão.
Fortaleza, 25/11/22.
Rui Martinho Rodrigues.
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