UMA NEGOCIAÇÃO
ESTRANHA
O ministro Paulo Guedes disse ter salvo
o mandato do presidente da República negociando com ministros do STF. Citou o
nome de cada um deles. O preço teria sido a demissão do então ministro da
Educação. Os ministros do STF se mantiveram silentes após estas declarações. O
presidente deveria ser destituído e os supremos magistrados não poderia
negociar a aplicação da lei, se havia motivo para alijá-lo do poder. O direito
premial admite negociação, mas pelo Ministério Público (MP), que tem, com
exclusividade, a prerrogativa de negociar colaboração premiada. O Guedes não
mencionou a participação do MP. Caso tenha havido conduta criminosa do
presidente, deixar de aplicar a lei, sem a participação do MP, foi muito estranho
e mereceria explicação, para dizer o mínimo.
Outra hipótese seria a da inexistência
de crime por parte do presidente. Neste caso o fato relatado seria ainda mais
chocante. A destituição de um presidente estaria em curso apesar de
juridicamente injustificável. Assim o STF teria demitido um ministro de Estado,
usurpando prerrogativa do chefe do Poder Executivo. Tivemos precedentes
semelhantes, quando o Supremo proibiu a nomeação da deputada Cristiane Brasil
para o ministério do Trabalho, pelo presidente Temer, a pretexto de uma
sucumbência em uma ação trabalhista. Registre-se que na Justiça do Trabalho nem
sequer há réu, apenas reclamante e reclamado.
A independência dos poderes da República
já não existe. Valendo-se de uma lex magna analítica, dirigente e
principiológica o STF resolveu dirigir o Brasil como um poder absoluto. A
positivação de princípios (antes eram aplicados apenas na integração do Direito,
preenchendo lacunas) colocou-os na primeira linha da aplicação da normatividade
jurídica. Princípios, todavia, têm inúmeras hipóteses de incidência.
Exemplificando: não dirigir perigosamente é um princípio, podendo incidir sobre
o excesso de velocidade ou muitas outras situações. Mas o limite a partir do
qual ocorre o excesso de velocidade fica a critério do julgador como apreciação
valorativa.
Diversa é a condição da espécie
normativa regra, a exemplo de “velocidade máxima 60km/h”. Esta só tem uma
hipótese de incidência. Não cabe ao julgador formular juízo de valor sobre a
periculosidade da velocidade. A CF/88, ao positivar os princípios, conferiu
enorme poder ao STF. Sendo analítica (detalhista) e programática (fixa um
programa para o Brasil do futuro), ensejou aos supremos ministros a postura de
reis filósofos da república platônica. Armados do controle concentrado de
constitucionalidade e outros instrumentos de controle dos atos políticos, tendo
a prerrogativa de errar por último, tornou-se um poder absoluto. Pode até
decretar que um triângulo tem quatro lados.
A Nova Hermenêutica
Constitucional serviu de pretexto para o STF atribuir ao texto constitucional
sentido claramente contrário a literalidade dos dispositivos analisados. Recentemente
metade da corte entendeu que “vedado” deveria ser entendido como “permitido”,
invocando a interpretação sistêmica e sugerindo a existência de
inconstitucionalidade na Constituição, ao examinar a reeleição dos presidentes
das casas legislativas do Congresso. A usurpação das funções do Executivo e do
Legislativo, com a cumplicidade de políticos e partidos, encorajou o tenentismo
de toga, lembrando a frase de Rui Barbosa: a pior ditadura é a do Judiciário,
porque contra ela não temos a quem apelar. Não existe saída institucional
diante do poder absoluto assim criado.
Fortaleza, 22/12/20.
Rui Martinho Rodrigues.
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