O FETICHISMO DO DIREITO
O fetichismo do Direito
dominou a política a partir do século XX. É a ilusão da norma jurídica como solução
para problemas materiais. As constituições até então tratavam da estrutura e
organização dos poderes públicos, formas e sistemas de governo. Dispunham sobre
direitos e garantias dos cidadãos no âmbito político; assim como no campo
jurídico em sentido estrito, como o devido processo legal e a ampla defesa.
Omissas quanto aos detalhes da vida em sociedade, elas deixavam livres o
legislador e o administrador do futuro. A Carta política americana, originalmente
tinha sete artigos. Acrescentaram-se, depois, dezessete emendas. As dez
primeiras trataram das liberdades individuais. As outras dezessete tratam do
Poder Federal. A Constituição americana de 1789 não estaria de pé, depois de
tanto tempo, se regulamentasse detalhes da vida em sociedade, a exemplo da
nossa CR/88, que dispõe sobre coisas como petróleo e relações de trabalho. A
Constituição americana, caso tivesse dispositivos sobre lenha e outras coisas
do século XVIII, não estaria de pé. Sintética é a denominação dada às leis
magnas enxutas, definido o Estado e normas de contrapoder, com obrigações de
não fazer. Estas não dependem da disponibilidade de meios para ter efetividade,
nem oneram ninguém, pelo que não estimulam tantas resistências e conflitos.
O século XX entregou-se
ao fetichismo do Direito. A Revolução mexicana de 1910 chegou ao poder e fez a
Constituição de 1917, a primeira a incluir os chamados direitos sociais. Depois
os alemães fizeram uma Carta Política em 1919, igualmente detalhista e
“generosa”. Prevaleceu este modelo: constituições analíticas. É a ideia de
assegurar bem-estar social por meio da norma jurídica. O Direito constitucional
passou a definir obrigações de fazer. Estas exigem meios e oneram alguém ao
requisitá-los, suscitando resistências. Junte-se a isso o modelo de
constituição rígida, que se por um lado oferece a vantagem da estabilidade
normativa, por outro amarra as mãos do legislador do futuro, impondo um
entendimento do passado.
A CR/88, nos
dispositivos reguladores da cidadania e da organização do Estado, foi a melhor
que já tivemos. Protegeu o cidadão com o Direito Penal garantista, na
organização dos poderes separou o Ministério Público da Advocacia Geral da
União, entre outras coisas. Merece elogios. Seguiu, todavia, a onda
internacional do fetichismo do Direito, ilusão de que norma jurídica pode
resolver problemas materiais. Analítica e rígida (obstáculo a emendas), dispõe
sobre direitos trabalhistas e sobre combustíveis na iminência do descarte pela tecnológica.
Pensa no bem-estar, não na reserva do possível.
A CR/88 foi prefaciada
(caso único no mundo) por Ulysses Guimarães, candidatíssimo a presidente da
República. Subiu no laque eleitoral. Temos miséria? A Constituição resolverá. Poderíamos
constitucionalizar o direito à vida. Seríamos imortais ou ganharíamos uma
indenização do Estado quando alguém morresse. O fetichismo do Direito criou
dispositivos “maravilhosos”. Universalizou a assistência à saúde. O mundo
maravilhou-se. Sanitaristas e políticos nacionais e estrangeiros elogiaram o
SUS, realmente muito bom para quem recebe tratamento no Hospital Sírio Libanês.
Estudos ideologizados conceberam a solução de todos os problemas, valendo-se de
dados seletivamente coletados, avaliam favoravelmente os seus restados. Tais
pronunciamentos são repetidos como argumento e autoridade, que nada vale para
as ciências do ser.
Saúde e educação continuam
péssimas. Os avanços de indicadores tais como anos de escolaridade,
analfabetismo, mortalidade infantil e longevidade, entre outros, existem sim,
mas não se devem ao fetichismo do Direito e sim ao processo de urbanização,
seguindo uma tendência mundial. Éramos um país rural. Hoje somos uma sociedade
urbana. É mais fácil escolarizar e cuidar da saúde na cidade que no campo, onde
as populações são isoladas pela dispersão e a distância. A urbanização não se
deveu ao fetichismo do Direito nem a ação de governo algum. Ela se deu
contrariando os arautos do bem-estar social, para quem o “êxodo rural” deveria
ser impedido. A reforma agrária era apoiada, entre outras coisas, no argumento
da “manutenção do homem no seu torrão natal”.
Nas cidades os
indicadores também melhoraram. Mas não foi a CR/88, que proporcionou tais
avanços. O mérito é da ciência, da difusão da informação pelo avanço das
comunicações, orientando as famílias. A natalidade caiu. É mais fácil cuidar de
dois do que de oito filhos. É a janela demográfica: a parcela infantil da
população diminuiu e a idosa ainda não aumentou tanto. A demanda por novas
escolas e novos serviços de saúde reduziram-se. O saldo positivo na
escolarização e na universalização dos serviços de saúde não se deve à CR/88.
Qualitativamente? Fracassamos. O fetichismo é o substituto da revolução ou a
sua nova fórmula. A túnica de Clio, a deusa da História, porém, é inconsútil. Não
tem emendas porque as rupturas, em seu campo, não são inteiramente radicais,
como querem os revolucionários. Pesquisas deveriam buscar nos estudos
interdisciplinares um antídoto para a prisão dos paradigmas
Porto Alegre, 25 de
setembro de 2017
Rui
Martinho Rodrigues
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