No coração de Ruy Castro
Brasil 10.02.16 21:42
Eu, Mario, conheci Ruy Castro em 1984, quando ele ainda não era escritor de sucesso. Éramos colegas na Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Depois que deixei o jornal, só o encontrei uma vez, na ponte aérea, já não me lembro mais se indo para o Rio ou vindo para São Paulo. Faz tempo.
Com Ruy Castro, aprendi uma lição, meio de longe, porque infelizmente nunca fomos amigos: escrever bem requer, não raro, humor. E o humor de Ruy Castro, nos textos e na convivência, podia ir do nível mais sutil ao mais escrachado.
Era (é) um mestre na arte inglesa da self-deprecation. Um dia, ele circulou na redação com uma abobrinha na mão. A quem lhe perguntava o motivo, respondia: "Essa é a diferença entre mim e o Claudio Abramo. Eu sei que escrevo abobrinhas, ao contrário dele, que acha que escreve coisas muito sérias". A gargalhada era certa.
Hoje, Ruy Castro publicou uma crônica na Folha, intitulada "Não há vagas", exemplo de como o humor pode ser mais demolidor do que a vetustez. Peço licença ao Otavio Frias Filho para reproduzi-la na íntegra:
"Outro dia, um cartola do PT declarou que Lula 'mora no coração do povo brasileiro'. Na condição de brasileiro em dia com as obrigações e portador de um coração de dimensões regulares, vi-me tecnicamente apto a hospedar o ex-presidente. Gelei. A ideia de ter meganhas entrando e saindo do meu coração, vasculhando cômodos, armários e debaixo das camas para proteger o chefe, me apavorou.
Além disso, Lula é um hóspede folgado. Apossa-se dos apartamentos e sítios a que o convidam como se fossem dele. Promove reformas como derrubar paredes, mudar escadas de lugar e instalar elevadores internos, vide o famoso tríplex que não lhe pertence no Guarujá -imagine se pertencesse. Com seu à vontade em relação à propriedade alheia, temo que, uma vez hospedado no meu coração, logo iria querer alterar o curso de minhas veias e artérias, como tentou fazer com o rio São Francisco.
E acho que meu coração não comportaria a turma que anda com ele. Lula começaria a receber seus amigos empreiteiros, pecuaristas e doleiros, os quais iriam se meter por meus átrios e ventrículos, e sabe-se lá para onde meu sangue passaria a ser bombeado. Sem falar em sua mulher, dona Marisa - com suas prerrogativas de ex-primeira-dama, mandaria trocar meus velhos fogões por luxuosos micro-ondas e atracaria uma canoa em meu sistema vascular.
Mas isso não acontecerá. Consultei o cardiologista e ele foi taxativo ao se opor a que eu receba Lula em meu coração, mesmo que por poucos dias. Como médico, teve péssima impressão do desempenho de Lula no setor da saúde enquanto presidente. E citou o meu próprio caso.
Nos últimos anos, por certas atribulações cardíacas, quase fui duas vezes para o beleléu. Do qual só me salvei tomando dinheiro emprestado aqui e ali, por ter um plano de quinta e não poder contar com um sistema decente de saúde pública."
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