Tolerância da sociedade faz corrupção ser grande, diz desembargador
- 17 setembro 2015
Ao receber a reportagem da BBC Brasil em seu gabinete no Tribunal Regional Federal da 3ª região, em São Paulo, o desembargador Fausto de Sanctis conta que esteve, dias antes, na Conferência Internacional Anticorrupção, realizada na Malásia no início deste mês.
O evento, relata, teve uma votação para eleger os casos de corrupção "do momento" no mundo. "Foram três: o do primeiro-ministro da Malásia (US$ 600 milhões foram descobertos em sua conta), o da Fifa e... o da Petrobras."
Como juiz federal, De Sanctis foi responsável por duas ruidosas operações sobre crimes financeiros na década passada: a Castelo de Areia, que tinha como alvo o grupo Camargo Corrêa – citada na Lava Jato – e a Satiagraha. Na última, foi acusado por Gilmar Mendes, então presidente do Supremo Tribunal Federal, de afrontar a corte ao determinar prisão do banqueiro Daniel Dantas pouco depois de o ministro ter acolhido habeas corpus.
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Hoje desembargador, ele diz não poder falar dos casos que lhe tornaram famoso. Mas externa suas críticas ao sistema jurídico, principalmente no tratamento a crimes econômicos, citando a possibilidade de anulação de processos – o fim das duas operações.
Autor de livros sobre corrupção, De Sanctis falará na semana que vem sobre o papel de empresas no combate na Conferência Ethos 360°, realizada pelo Instituto Ethos, em São Paulo. Defensor da delação premiada e da alienação de bens, ele afirma ver, na sociedade, tolerância com a corrupção. "Sonegação não passa de corrupção", exemplifica.
Leia os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - A relação nociva entre empresários e o poder foi cerne da Satiagraha e da Castelo de Areia, e está no centro da Lava Jato. O país está avançando no combate a esse tipo de ligação?
Fausto de Sanctis - O Brasil vive um aparente aperfeiçoamento institucional. O que foi realmente inovador, um marco, foi a criação das varas especializadas em lavagem. Em alguns países se defende a criação de varas de corrupção, o que talvez esteja faltando aqui. Ela é tão sistêmica, não tem sentido não ter mais casos correntes em um país em que se vê corrupção em todo lugar.
Havia um sentimento absoluto de impunidade. E o início das varas, aquele protagonismo, incomodou muito. Houve uma reação da criminalidade econômica, com ajuda de setores do Congresso Nacional.
Vimos, com a criação das varas, não só um injustificado repúdio ao seu funcionamento pelo próprio Judiciário. Teve o Legislativo querendo rever legislação já aplicada para o crime comum há muitos anos, mas que, quando aplicada para o econômico, passou a ser revista. Para ele continuar acima da lei.
(Houve) a releitura sobre a prisão, sobre monitoramento telefônico... que existe em tudo quanto é país – quando é necessário, não é que você grampeia todo mundo. Houve um movimento até de acabar com as varas.
BBC Brasil - Foi preciso surgirem essas varas especializadas (no combate à corrupção) para os casos virem à tona?
De Sanctis - O problema sempre existiu, obviamente. A corrupção existe em todo lugar. No país desenvolvido, os agentes corruptos usam de maneira indevida o sistema. Nos subdesenvolvidos, o sistema é fraco.
Em todo o Brasil, o sistema é fraco. É uma luta inglória para conseguir dar a sentença porque, até certo momento atrás, os processos eram parados por habeas corpus sem sentido. Eram paralisados, quando não declarados nulos. Tudo era nulo, não importa o quê.
E tem um sistema legal com punições brandas. No caso da corrupção, a literatura mundial diz que tem de haver prisão. As pessoas têm de sentir que a corrupção não vale a pena, que o crime econômico não vale a pena. Não tem sentido aplicar multa porque isso entra nos custos do delito. Suspender alguns contratos? Não vai bastar.
Há esse problema de legislação, o mau funcionamento do sistema procedimental, que permite recursos ad aeternum, quando não habeas corpus a todo instante, inclusive de réus soltos. Um sistema único e particular, que faz com que os processos não cheguem à execução da pena.
BBC Brasil - O que mudou para hoje vermos empresários e políticos irem presos?
De Sanctis - Espero que não seja um movimento político. Ou seja, porque se deseja asfixiar as pessoas que estão no poder. Que seja resultado de um aperfeiçoamento, ou da conscientização das autoridades judiciárias de seu papel de atender às expectativas sociais.
Se há indício forte de corrupção, tem que haver resposta rápida, eficiente, e não passar a mão na cabeça. O Poder Judiciário é um Poder de reafirmação de valores. E esses valores só são reafirmados quando tem a resposta da lei. E a lei prevê prisão, apesar de ser uma pena baixa, que começa com dois anos. A corrupção pode ser de R$ 500 milhões ou de R$ 1, (o que, aliás) não tem sentido.
BBC Brasil - Muito se discute o financiamento empresarial de campanhas nesse contexto.
De Sanctis - O que se falou nesses debates na Malásia é que o financiamento partidário dos políticos é um elemento para ser bem regrado pelo Estado, porque é um campo profícuo de corrupção.
Mas olha, não se combate a corrupção olhando do povo em direção ao governo. Se o particular não for honesto, não vai ter um governo honesto. A nossa tolerância é que faz com que a corrupção seja grande. E não porque os corruptos estão lá, como se fosse algo dissociado da cultura em que estão inseridos.
Só vou sentir aperfeiçoamento quando, ao andar na (av.) Paulista, não houver comerciantes que vendem sem nota fiscal e todo mundo achar isso tolerável. As pessoas sonegam como se fosse um fato da vida, quando não passa de corrupção. É o dinheiro público que não vai para o Estado.
E a resposta legítima do Estado só vai vir quando houver sustentação na sociedade. As manifestações de 2013 deram sustentação aos políticos para aprovar a Lei Anticorrupção. Nunca se pensou que essa lei fosse passar.
BBC Brasil - E o foro privilegiado? O senhor é um crítico...
De Sanctis - A seletividade dos juízes (nos julgamentos) é a primeira (ação) a ser combatida e isso não está entre as dez propostas do Ministério Público Federal de combate à corrupção, o que me causa estranheza.
Porque uma das marcas (necessárias) são a imparcialidade e a independência, de todos que têm o ônus e o dever de apurar crimes graves. E têm que ser garantidas com critérios objetivos.
E isso não é só para juízes. Do que adianta termos tribunais de contas cujos membros são indicados por conveniências políticas? Não pode ter apadrinhamento nos setores que cuidam de licitações públicas. Esses setores não podem ter cargos comissionados, senão perdem a razão de existir. É melhor ter auditorias independentes.
BBC Brasil - Na Lava Jato, advogados criticam o que chamam de concatenação entre o juiz Sergio Moro, o Ministério Público e a PF. E essa é uma crítica que já foi feita ao senhor no passado. Como vê isso?
De Sanctis - É uma crítica muito superficial. Esquecem que a polícia se qualificou muito, agregou conhecimento das investigações no passado. Está mais difícil ludibriá-la. As varas especializadas permitiram um ganho que levou a investigações cada vez mais eficazes. Isso vale também para o Ministério Público e para o juiz.
Sendo bem feito pela polícia, o trabalho provavelmente será ratificado pelo Ministério Público e reconhecido pelo Judiciário. Não adianta achar que houve concatenação ou ligação indevida.
Muitos delegados, quase todos, só conheci trabalhando. O relacionamento era meramente profissional. Um trabalho que acredito que deva ser como o do Paraná (Lava Jato).
BBC Brasil - Outras críticas são que prisões seriam usadas para obter delações e que o próprio instituto da delação premiada poderia levar pessoas a cometerem crimes planejando um acordo caso sejam pegas...
De Sanctis - Quando temos uma lei falando que a confissão é um atenuante, ela está estimulando a pessoa a confessar. Está exercendo uma pressão psicológica. Quando estabelece que a desistência voluntária de um crime ou arrependimento posterior tem diminuição de pena, está fazendo uma pressão psicológica, que é legítima. Com a delação premiada não é nada diferente.
A prisão, por si só, exerce pressão psicológica. A pessoa vai presa porque requisitos são preenchidos. E é óbvio que, ao delatar, vai esperar a soltura. O juiz, ao soltar, nada mais faz do que cumprir a legislação.
Agora, isso não significa que o delatado não é digno de ser ouvido. A palavra do delator não vale, em hipótese alguma, como prova absoluta. É só um caminho para a revelação do fato. Deve ser confirmada com outros meios, senão não basta.
BBC Brasil - O sr. foi um dos primeiros a atuar na apreensão de obras de arte....
De Sanctis - Quando falei para a Polícia Federal, em 2004, "vocês estão apreendendo bens, veículos e imóveis e se esquecem de obras de arte", todo mundo me olhou como se isso fosse menos importante. Agora não se discute mais isso, por conta da Lava Jato.
Vi traficantes negociando obras para pagamento de advogados. E conseguindo adquiri-las de maneira muito fácil, nessas casas de leilões internacionais, que não têm nenhum compromisso com a prevenção à lavagem. O processo penal não é só condenar e absolver. Inclui a relação de bens e o tratamento deles porque sem apreensão não há o asfixiamento do crime organizado.
Falando nisso, a pessoa jurídica tem de ser responsabilizada. No Brasil, historicamente, pessoas físicas são responsabilizadas. Mas elas são substituídas, e as jurídicas continuam. Por isso o problema de empresas que reiteram na prática criminosa, principalmente aquelas que financiam campanhas políticas.
BBC Brasil - Como o sr. vê os acordos de leniência (feitos pela Controladoria-Geral da União, geralmente permitindo às empresas que confessem continuar prestando serviços ao governo)?
De Sanctis - A impressão que se tem é que os acordos estão sendo feitos para se acomodar o crime econômico. Isso não pode acontecer. Tem de ser sério, com a primeira empresa a falar. (Ela) não pode trazer fatos já conhecidos. Não pode ser um acordão que fique conveniente para as empresas e que dê sobrevida a quem não pode dar. A lei estabelece até a dissolução se for o caso.
O Brasil tem que realmente passar a limpo, com seriedade. E não usando a legislação para benefício do crime organizado. Espero que não seja isso que esteja acontecendo por parte da Controladoria-Geral da União.
BBC Brasil - O sr. foi um dos primeiros juízes a adquirir fama por casos de corrupção. Os ministros do STF viveram isso com o mensalão, e hoje o Moro. Fama colabora ou atrapalha?
De Sanctis - Quando eu ia dar palestra, juízes me colocavam em um pedestal. Eu saía do palco e dizia: "olha, nós somos colegas". A pessoa colocada nesse pedestal pode perder o chão. Isso não é bom, a autoridade nunca pode perder o chão. Tem que fazer o exercício da humildade o tempo todo. Estou só cumprindo com o meu dever.
O que me marcou é que o sistema está de tal forma ineficiente que faz com que certas pessoas que estão atuando conforme a lei virem heróis. Isso é péssimo. Não é a pessoa física que precisa ser valorizada. É preciso ter instituições fortes que sejam valorizadas.
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