DESORIENTAÇÃO FALACIOSA
O mundo está desorientado, diz Anthony Daniels
(Theodore Dalrymple, 1949 – vivo), que responsabiliza os intelectuais por isso.
As sociedades estão conflagradas, fato que guarda relação com a perturbação de
que fala o autor citado. A relação do mundo letrado com a tempestade no campo
da cognição e da axiologia se deve, em grande parte, às raízes românticas de
correntes teóricas que se tornaram poderosas, conforme Isaiah Berlin (1909 –
1997), na obra Ideias políticas na era romântica.
Guardam relação com a perda de contato
com a realidade o titanismo e o subjetivismo exacerbado vindos do romantismo e
com o perspectivismo. Um quadrado, um vírus ou um computador são realidades
dotadas de universalidade, embora tenham significados distintos para diferentes
pessoas. A comunicabilidade começa pela universalidade da dimensão real dos
objetos cognoscíveis, ensejando discursos denotativos com uma relação singular
do significante com o sujeito cognoscente. A subjetividade não pode se sobrepor
à realidade.
A expressão “lugar de fala” usada nos
chamados “movimentos sociais” enfatiza a influência da singularidade das
experiências vividas no lugar social do sujeito cognoscente. A comunicabilidade
fica ameaçada. A vigilância epistemológica fica comprometida pela
desqualificação da crítica de quem não compartilha a subjetividade do outro. A
comunicabilidade falece sob a ação do perspectivismo e sem ela não pode haver
sociabilidade. O Direito, as engenharias, as ciências em geral não podem
prescindir da objetividade. Nem a Psicologia pode se circunscrever apenas à
subjetividade. Exemplo da necessidade de reconhecer a dimensão objetiva é o
fato de ser impossível diagnosticar uma mania de perseguição sem proceder ao
contraste com a realidade objetiva. O perspectivismo pode ser um convite ao
delírio, ao vitimismo e à demagogia.
O apotegma segundo o qual na Medicina,
no amor e na guerra vale tudo é errado. Pode levar ao charlatanismo, ao crime
de guerra ou ferir a ética nas relações amorosas. A normatividade social não
pode ser apenas uma linha, nem inteiramente indeterminada. Existe o padrão
ideal e um padrão real, contidos, não em linha, mas em um campo limitado pela
reprovação social, por leis emanadas do Estado e por convicções. A ética da
responsabilidade, diversamente da ética da convicção, representa uma forma de
legitimação que invoca as razões de Estado (Max Weber, 1864 – 1920), devendo circunscrever-se
aos motivos alegados. Assim preserva os limites das demais concepções de
normatividade, sejam elas o utilitarismo, a tradição, costume ou a ética da
convicção. A ética da responsabilidade não incide sobre as relações privadas, o
que reduz a possibilidade de choque com outras concepções.
A
guerra cultural
A guerra cultural é outro fator que
desencadeou a conflagração das sociedades contemporâneas. As indagações
frequentemente suscitadas em face deste tema são: existe tal guerra? Caso
exista, ela é um problema relevante? O que está em disputa nesta guerra e quem
são os protagonistas deste conflito?
A primeira pergunta encontra resposta
nos seguintes livros: Os intelectuais e a organização da cultura, de
Antonio S. F. Gramsci (1891 – 1937); e Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado, de Louis Althusser (1918 – 1990). Estes autores falam claramente de
uma luta ideologia difusa na sociedade. A Escola de Frankfurt também fala
nisso. Mas a referida luta é uma guerra? Alguns entendem que o uso da palavra
guerra, neste caso, banaliza o sentido do termo. Mas hoje estrategistas
militares falam em guerra híbrida e guerra de quinta geração, expressões que
engloba os embates no campo cultural, como financiamento de narrativas,
promoção de mudança cultural com potencial para gerar conflito, divisões e
desagregação social.
A Sociedade Fabiana, fundada em 1884, na
Inglaterra, não queria cargos, não disputava eleições. Só que queria promover a
hegemonia ideológica do socialismo. Também teve o efeito de criar correntes
aparentemente distintas da citada corrente ideológica, dando ao público a
impressão de ter a opção de uma opção diferente, que continuava sendo socialista,
mas se apresentava como diferente. Assim isentava o suposto “espírito do
socialismo” que não poderia ser responsabilizado pelas condutas do socialismo
real.
A
relevância da guerra cultural
A reengenharia social e antropológica
está na origem da guerra cultural, começando pela concepção de o motor da
história é o conflito. É preciso negar a existência de um núcleo da condição
humana (natureza humana), distinto da dimensão histórica e cultural. Assim fica
aberto o caminho para reengenharia antropológica. O conhecimento necessário
para tal empreendimento, apresentado como “ciência”, é outra coluna de
sustentação do pretensioso projeto. A presunção de superioridade intelectual e
de superioridade moral completam a suposta legitimação da ambiciosa meta.
Mas ciência é o que cresce corrigindo os
próprios erros (Karl R. Popper, 1902 – 1994). O projeto de reengenharia não
corrige os seus erros apesar dos repetidos insucessos de suas experiências
históricas. As ciências sociais têm a peculiaridade de não fazer vaticínios,
diversamente das ciências da natureza. A Astrofísica antecipa eclipse com grande
antecedência. A Química sabe qual será o resultado da reação entre duas
substâncias (em condições definidas). Pedro Demo, na obra Metodologia
científica nas ciências sociais, chega a dizer que estas ciências não vão
além da hipótese. Não é possível repetir controladamente a Revolução Francesa
ou a inflação brasileira dos anos noventa para testar uma teoria.
A
consciência do povo é o objeto em disputa
O projeto demiúrgico não é científico. É
cientificista e ideológico. Promete o irrealizável e formula críticas
falaciosas. É uma tática de dominação. O domínio da linguagem é um dos métodos
de que se vale para controlar as consciências. A ressignificação dos conceitos
e a desclassificação do pensamento divergente servem ao esforço de dominação. O
pensamento é uma alvenaria cujos tijolos são as palavras. Conceitos designam
fatos, como os substantivos; ou juízos relativos a alguma qualidade, como é o
caso dos adjetivos. Quem domina a língua domina as consciências porque pensamos
com palavras.
Quem diz “preconceito” aludindo a um
juízo moral pratica uma tática de dominação. O prefixo “pre” indica
anterioridade, antecedência. Preconceito é um juízo que antecede o conhecimento
do objeto cognoscível. Um juízo sobre objeto conhecido não é preconceito, ainda
que possa expressar um erro. Dizer que um juízo moral é preconceito é próprio
de quem engana, se não foi enganado.
Joseph S. Nye Jr. (1937 – vivo), na obra
O futuro do poder, menciona três faces do poder. A primeira induz “b” a
fazer o que “b” inicialmente não faria, recorrendo a campanha de informação (ou
desinformação), quando for poder brando. Os meios de comunicação divulgam um
novo léxico em nome dos altos valores (maldades se fazem em nome dos mais altos
valores). A segunda face, quando no modo brando, exclui a escolha de “b”
excluindo as estratégias de “b”. Criar palavras e frases proibidas, censura em
plena “democracia”, praticada “apenas excepcionalmente” e “por algum tempo”. A
terceira face, ainda como poder brando, molda a preferência de “b” para que
algumas estratégias não sejam sequer consideradas.
Controlar consciências
é totalitarismo. Também inclui transformar o ensino em proselitismo, juntamente
com o aparelhamento da mídia. O ataque impiedoso às redes sociais não se deve
as mentiras nelas divulgadas, antes reflete o incômodo gerado pelas verdades
que elas noticiam.
Fortaleza, 26/5/23.
Rui Martinho Rodrigues.
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