A DEFESA INTRANSIGENTE DO BEM
A observação histórica mostra grandes
torpezas praticadas em nome dos valores mais elevados. Vários fatores
contribuem para tanto. Um deles é a cegueira e a incomunicabilidade dos
paradigmas (Thomas S. Kuhn, 1922 – 1996); ou ao obstáculo epistemológico
constituído pelo conhecimento prévio (Gaston Bachelard, 1884 – 1962). Kuhn
demonstra que o conjunto de pressupostos e métodos pelos quais as informações
são processadas impedem a compreensão do que é estranho ao referido conjunto.
Bachelard percebeu que o conhecimento considerado válido gera convicção,
certeza e resistência para com informações contrárias.
Kuhn ressaltou: a comunidade científica
nunca aceitou revoluções científicas, apesar de bem fundamentadas. Max K. E. L.
Planck (1858 – 1947) teria dito que a Física só avança quando morre uma geração
de físicos. A barreira cognitiva e a visão da diferença como torpeza se
relacionam. Daí até o combate violento ao que supostamente é uma ignomínia é
apenas um passo. Os meios intelectuais e até os círculos das chamadas ciência duras
são vulneráveis à convicção e intolerantes. Louis Pasteur (1822 – 1895) foi
considerado louco por contrariar a teoria dos miasmas, embora apresentasse
robustas evidências da teoria microbiana. Sigmond S. Freud (1856 – 1939) foi
expulso do Conselho de Medicina de Viena.
A convicção acerca do que seja virtude e
vício leva à pratica da violência porque percebe as razões do outro como
ignorância ou má-fé. A primeira reação pode ser no sentido de conscientizar ou
catequizar o alienado, ignorante ou preconceituoso. O passo seguinte, quando o
alienado resiste, é excluir, intimidar ou desqualificar (queimar na “fogueira”).
John Locke (1632 – 1704), nas “Cartas sobre a tolerância” adverte: a que
convicção ignora a falibilidade humana. Atribui apenas ao outro a possibilidade
de erro. O reconhecimento da própria falibilidade é um antídoto contra a
intolerância.
Mas não só a incomunicabilidade estimula
a intolerância. Outro fator poderoso é a ética teleológica, que justifica os
meios em nome dos fins. Uma teoria clássica do Direito Penal ressalta a ação
finalista do agente, circunscrevendo o dolo aos objetivos do sujeito da ação. O
desejo de fazer o mal tipifica o dolo. O propósito de fazer o bem, ainda que
cause algum dano, substitui o dolo pela culpa em sentido estrito. Fazer o mal
em nome do bem, nada obstante, não se confunde com negligência, imprudência ou
imperícia, que são os elementos da culpa. Ainda que pensando defender os
valores mais elevados, sem os fatores constitutivos da culpa o que temos crime doloso.
A presunção de superioridade moral e
intelectual, suposto fundamento de defesa do bem, não se confunde com pureza.
Nem é apenas um obstáculo epistemológico. Arrogância e subterfúgio para defender
interesses inconfessáveis e paixões pouco republicanas podem se ocultar sob os
“mais elevados fins”. O artifício é antigo. Paulo já advertia contra a
capacidade de enganar, do mal com aparência do bem: “não é de admirar, pois o
próprio Satanás se transforma em anjo de luz (II Carta aos coríntios, 11; 14).
A exibição de virtudes pode ser um gesto de quem se sente sujo. Bandidos
praticam violência contra autores de certos crimes. A violência contra os que
comentem alguns erros pode ser uma tentativa de afirmar virtudes inexistentes. A
polarização da sociedade tem algo de exaltação de torcida de futebol, da
incomunicabilidade dos paradigmas, do desejo de aparentar virtude e de
artifício enganador.
Fortaleza, 22/9/21.
Rui Martinho Rodrigues.
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