Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Cristian Góes, o Dreyfus Sergipano

Cristian Góes, o Dreyfus Sergipano


Desde a ascensão do PT ao poder, a imprensa, o STF, o CNJ, a OAB e diversas outras instituições nacionais vêm denunciando as tramas e os atentados sistemáticos contra a nossa raquítica democracia, contra os direitos e garantias individuais, contra a liberdade de imprensa e de expressão, e até contra algumas cláusulas pétreas da Constituição Federal. 

As denúncias, que até bem pouco tempo eram apenas ameaças potenciais, agora já se constituem reais, como podemos constatar a partir dos fatos ocorridos recentemente em Sergipe, envolvendo o jornalista sergipano, José Cristian Góes, autor da CRÔNICA LITERÁRIA FICCIONAL, intitulada, Eu, o coronel em mim, cujo texto original, publicado no seu blog no dia 29 de maio de 2012, motivou a notitia criminis confiada à 3ª Vara Criminal de Aracaju; notitia esta oferecida ao mui prestimoso Ministério Público de Sergipe, pelo vice-presidente do Tribunal de Justiça daquele Estado, desembargador Edson Ulisses Melo, quem, por uma coincidência do destino ou por méritos pessoais ou ainda por circunstâncias criadas por força do nepotismo político vigente no Brasil, é duplamente cunhado, tanto do presidente do mesmo Tribunal de Justiça, desembargador Cláudio Déda, quanto do governador de Sergipe, Marcelo Déda, do PT, responsável pela escolha e nomeação, pelo quinto constitucional, do então advogado, Edson Ulisses Melo, empossado pelo cunhado no cargo de desembargador. 

Como a 3ª Vara Criminal declinou da competência em virtude de tratar-se de infração de menor potencial ofensivo, o “Processo Criminal Nº 201245102580” foi ancorado na vara da juíza, Brígida Declerc, do Juizado Especial Criminal de Aracaju, e numa rapidez sem precedentes na história das condenações no Brasil, no dia 22.03.2013 iniciou-se a instrução do feito e no dia 04.07.2013 a sentença foi prolatada e resolvida, isso graças ao empenho do Juiz substituto, Luiz Eduardo Araújo Portela, dando ganho de causa ao desembargador, Edson Ulisses Melo, simplesmente por haver ele se sentido atingido e ofendido em sua honra com uma expressão contida no texto, “jagunço das leis” e por isso mesmo pediu a prisão do Dreyfus sergipano por injúria e crimes correlatos previstos no Art. 140, caput c/c Art. 141, II e III, ambos do código Penal. 

Para que os leitores e as autoridades brasileiras possam entender a gravidade do caso, peço respeitosas venhas ao jornalista, José Cristian Góes, para reproduzir aqui a crônica de sua autoria que motivou uma atrocidade jurídica perpetrando à revelia dos interesses do Povo Brasileiro, por vontade de um juiz substituto e mais ainda de um desembargador da GLORIOSA, CEGA, SURDA E MUDA JUSTIÇA de Sergipe. Leiam, por favor, a crônica e retornaremos seguir! 

Eu, o coronel em mim
Mando e desmando. Faço e desfaço

Está cada vez mais difícil manter uma aparência de que sou um homem democrático. Não sou assim, e, no fundo, todos vocês sabem disso. Eu mando e desmando. Faço e desfaço. Tudo de acordo com minha vontade. Não admito ser contrariado no meu querer. Sou inteligente, autoritário e vingativo. E daí? 

No entanto, por conta de uma democracia de fachada, sou obrigado a manter também uma fachada do que não sou. Não suporto cheiro de povo, reivindicações e nem conversa de direitos. Por isso, agora, vocês estão sabendo o porquê apareço na mídia, às vezes, com cara meio enfezada: é essa tal obrigação de parecer democrático.

Minha fazenda cresceu demais. Deixou os limites da capital e ganhou o estado. Chegou muita gente e o controle fica mais difícil. Por isso, preciso manter minha autoridade. Sou eu quem tem o dinheiro, apesar de alguns pensarem que o dinheiro é público. Sou eu o patrão maior. Sou eu quem nomeia, quem demite. Sou eu quem contrata bajuladores, capangas, serviçais de todos os níveis e bobos da corte para todos os gostos.
Apesar desse poder divino sou obrigado a me submeter às eleições, um absurdo. Mas é outra fachada. Com tanto poder, com tanto dinheiro, com a mídia em minhas mãos e com meia dúzia de palavras modernas e bem arranjadas sobre democracia, não tem para ninguém. É só esperar o dia e esse povo todo contente e feliz vota em mim. Vota em que eu mando.

Ô povo ignorante! Dia desses fui contrariado porque alguns fizeram greve e invadiram uma parte da cozinha de uma das Casas Grande. Dizem que greve faz parte da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse povo.
Na polícia, mandei os cabras tirar de circulação, pobres, pretos e gente que fala demais em direitos. Só quem tem direito sou eu. Então, é para apertar mais. É na chibata. Pode matar que eu garanto. O povo gosta. Na educação, quanto pior melhor. Para quê povo sabido? Na saúde... se morrer “é porque Deus quis”.

Às vezes sinto que alguns poucos escravos livres até pensam em me contrariar. Uma afronta. Ameaçam, fazem meninice, mas o medo é maior. Logo esquecem a raiva e as chibatadas. No fundo, eles sabem que eu tenho o poder e faço o que quero. Tenho nas mãos a lei, a justiça, a polícia e um bando cada vez maior de puxa-sacos.
O coronel de outros tempos ainda mora em mim e está mais vivo que nunca. Esse ser coronel que sou e que sempre fui é alimentado por esse povo contente e feliz que festeja na senzala a minha necessária existência.
José Cristian Góes.

Ora, pelo simples fato de haver escrito e publicado a crônica ou conto ficcional acima, narrado por um personagem anônimo, genuinamente literário, de forma confessional e na 1ª pessoa, entificando um coronel vingativo, poderoso, truculento (a figura lembra muito mais Josep Stalin, o troglodita do Kremlin nos seus temos diabólicos, do que um coronel nordestino), o autor desse texto intimista, mesmo sem haver feito citações de nomes, nem de locais, muito menos de datas ou circunstâncias, foi denunciado, acusado, processado e condenado a cumprir 7 (sete) meses e 16 dias de prisão. 

A absurda sentença, que mereceu uma onda de protestos da sociedade sergipana, logo foi comutada em prestação de serviços comunitários, rendeu 32 laudas de escassos elementos processuais (denúncia, defesa prévia, oitivas, tipificação) e começa com a seguinte transcrição literal dos autos: Consta dos presentes autos que, no dia 29 de maio de 2012, o denunciado publicou matéria matéria jornalística no site da Infonet, de ampla circulação e divulgação nesta Cidade, ofendendo a dignidade e o decoro do Desembargador Edson Ulisses de Melo, ao lhe atribuir o termo “jagunço das leis”, identificando-o como marido da irmã do governador do Estado de Sergipe, a quem se dirigia a matéria jornalística.

Ora, o Direito não é o discurso do poder, portanto, não pode ser usurpado ou subvertido para servir de tenazes contra os corpos ou consciências em benefício de forças políticas ou econômicas dominantes. A supracitada transcrição dos autos (tal como consta nos processos infames de Stalin contra o poeta russo, Ossip Mandelstam, perseguido, espicaçado e eliminado após décadas de sofrimento nos Gulags), é igualmente injuriosa em sua totalidade, passiva inclusive de reparação posterior, pois, ao contrário do que puseram nos autos contra a honra do jornalista condenado, é possível que se levante a tese de que, quem de fato cometeu injúria foi a acusação, como verá o leitor na versão degravada da oitiva do desembargador: 

“Que o declarante tomou conhecimento através de um telefonema feito pelo Dr. Clóvis Barbosa, indagando se o declarante tinha lido um artigo num blog do Sr. Cristian. Que o declarante disse que não, pois não costuma ler esses blogs… Que ele disse para o declarante ler para ver o que estava escrito lá, pois havia uma agressão forte ao declarante…. Que o declarante foi ler o artigo, que tinha sido publicado. Que o declarante realmente constatou que o que estava sendo dito ali era realmente com o declarante, porque, do exposto naquele artigo, que claramente se reportava ao governador, que era tido como coronel, constava lá que além de reportar que o coronel tinha a justiça na mão, tinha a polícia na mão, quando queria, mandava chamar, mandava bater, fazer e acontecer, e dizia mais assim: quando ele quer dar um pé na bunda, chama o jagunço das leis. Que daí veio realmente a identificação: esse jagunço das leis, não é por acaso que é casado com a irmã do coronel. Que se admitir, no raciocínio do declarante, que aquela referência escrita ali era com o governador, que Sergipe só tem o desembargador, que era o suposto jagunço, conforme ele afirmou, é casado com a irmã do governador. Que o declarante viu que o artigo tinha posto carteira de identidade, CPF e DNA da pessoa que ele estava querendo atingir, que é o próprio declarante, que só tem um desembargador casado com a irmã do governador, o suposto jagunço, que era Edson Ulisses.”(Depoimento do Desembargador Edson Ulisses).

O testemunho induz o leitor a entender que o desembargador, movido por comentários de amigos, apegou-se ao texto e nele viu-se a si próprio, entificado numa figura ficcional e admitiu que o perfil e as ações do truculento e vingativo coronel na narrativa, referem-se a ele próprio, corporificado naquele ente literário fictício.

Evidentemente que o fenômeno translúdico, pode ocorreu por acréscimos semióticos ou por símiles absorvidas a partir do que não foi dito, ou ainda porque o leitor viu-se na carapuça de um personagem ficcional e desse modo, com ele se identificou, inclusive com os atributos de verossimilhança que saltam da ficção para uma dada realidade. 

Nikolai Gogol, Fiódor Dostoiéviski e Boris Pasternak foram vitimas desse fenômeno translúdico e da mordaça imposta pelo kremlin, de onde o tirano condenava as almas tão bem retratadas nos clássico universais, Almas Mortas, Crime e Castigo e na obra ficcional que rendeu um Novel a Pasternak, Dr. Jivago. 

Referi-me os autores russos, perseguidos pelos comunistas, para dizer que, se uma acusação estapafúrdia como essa vier a se tornar jurisprudência nos tribunais do Brasil, todos os autores, escritores, poetas, cronistas, contistas, dramaturgos, roteiristas, novelistas diretores e jornalistas do Brasil, poderão ser acusados e levados aos cárceres da censura judiciária, bastando para tanto que alguém com influência nas cortes apresente uma acusação de que seu perfil biográfico se encaixa no bojo de um texto ficcional ou que sua honra fora maculado, e então o autor do texto poderá ser alcançado pelo arpão do autoritarismo legalista, podendo este ser condenado à prisão (tal como se faz nos regimes vermelhos totalitários) com base numa mera suposição de verossimilhança (como é o caso em foco); podendo ainda o autor ser forçado a pagar penas pecuniárias em favor da truculência e da inconstitucionalidade que ora se pretendem legal e soberana no Brasil.

Na condição de escritor de obras de ficção e de leitor habituado às longas jornadas do pensamento dos autores universais, apresento-me voluntariamente, de boa-fé e com plena convicção quanto a imparcialidade das minhas afirmações (pois não conheço nenhum dos envolvidos na lide), para afirmar que, não encontrei no texto literário do jornalistaJosé Cristian Góes, uma única frase que possa induzir o leitor a produzir ilações ou ideações capazes de denotar ou de conotar difamação ou ofensa à honra “subjetiva” do desembargador Edson Ulisses Melo, e muito menos contra a honra do seu cunhado, governador Marcelo Déda, do PT, repita-se, responsável por sua escolha e nomeação, com o recurso do quinto constitucional, para o cargo de desembargador. 

Afirmo ainda, perante qualquer instância ou tribunal imparcial do planeta, que não encontrei nessa crônica uma única palavra capaz de apontar um ínfimo de prova injuriosa contra quem quer que se sinta atingido ou ofendido, por mais privilegiado que se presuma, nem mesmo indiretamente. Afirmo ainda não encontrei no texto aludido uma única metáfora capaz de levar uma autoridade ou um cidadão comum a engendrar um fio ínfimo de conexão da narrativa literária com as suposições lúdicas ou de realismo forçado, invocadas pela denuncia. Tal conexão inexiste, porque não se pode ler, honestamente, um texto por acréscimos e dele se extrair o que nele não está escrito, nem mesmo que os leitores recorram à mais frágil, débil e corrompida noção de verossimilhança. 

Entretanto, no preâmbulo que embasa a sentença absurda e desamparada de legalidade, o magistrado inseriu, por acréscimo do que no texto não pode ser lido, o seguinte juízo: Do texto escrito e tido por fictício pelo jornalista acusado, visualiza-se a extrapolação da liberdade de manifestação, já que ofende a honra de terceiro. Ao veicular e induzir que o Desembargador seria um “jagunço das leis”, deu a entender que ele estaria a serviço do Governador do Estado, botando em credibilidade não só o exercício funcional da vítima, mas descredibilizando todo o Poder Judiciário.

Ora, diante das elucubrações dos depoimentos das testemunhas, tomados como prova criminal, ouso afirmar, que não pode haver liberdade de expressão num Estado com uma estrutura jurídico-política instalada sob os pilares do nepotismo. Se houvesse liberdade de expressão como alude o sentenciante, não haveria de se falar aqui em crime quando, comprovadamente, não houve violação de nenhuma norma penal por parte do jornalista, nem mesmo da gramática que nos favorece com tantos recursos linguísticos e estilísticos, de modo que, a extrapolação textual e real de liberdade de manifestação aludida no preâmbulo acusatório, não pode ser atribuída ao autor da crônica ficcional, e sim ao julgador do mérito, conquanto este afirma que o réu, ao veicular e induzir que o desembargador seria um “jagunço das leis”, descredibilizou todo o Poder Judiciário.

Data maxima venia de quem pense de modo diverso, a afirmação do sentenciante é uma aberração jurídica, deixando à luz de um olhar desarmado, que o juiz cometeu excesso de juízo, pois não há tal citação na crônica, nem mesmo que se faça uma extrapolação subliminar no texto. Ademais, é consenso entre os juristas respeitáveis do país que o fundamento da Justiça é fazer justiça-justa, ou seja, só pode ser considerado imparcial e justo um julgamento, quando o magistrado fundamenta a sua decisão recorrendo ao acervo probatório existente nos autos. 

E quais são as provas concretas de injúria constantes nos autos, senão o que sequer fora escrito no texto? Mas, mesmo assim, algumas testemunhas de acusação, dentre as quais constam nomes ligados (como carne e unha) ao esquema político no poder, entenderam, por suposição, por superposição lúdica ou por acréscimos semióticos, que a crônica atingiu a honra do desembargador. 

É certo que o sentenciante leu os depoimentos, tomou-os como provas e, no fã de atender a uma demanda formal do Parquet pela condenação do jornalista, ultrapassou os limites processuais e entrou no mérito litigante em defesa da parte mais forte (a quem está ligado institucionalmente), tanto que deitou no processo a seguinte afirmação: … Não há como atacar a credibilidade de investidura do Desembargador, embora sendo cunhado do Governador, pois teria sido bem eleito pela OAB e o mais votado pelo pleno do Tribunal, e que a indicação do governador normalmente acompanha a vontade da maioria. 

Para um observador sensato, está claro que o sentenciante quis realçar os méritos do desembargador dizendo que ele concorreria pelo quinto constitucional em igualdades de condições com os seus concorrentes, mas não justificou o objetivo dessa intromissão inoportuna e descabida na lide. Isso evidencia a vertente de tomada de parte.

Aqui não carece dedução, nem que se acrescentem palavras, e muito menos que se aponte uma luz na escuridão hermenêutica dos enunciados processuais para que as mentes desarmadas percebam no descontexto das interpretações invertidas, e tomadas como válidas, uma vertente forçada e categórica do jusnaturalismo, que para muitos autores respeitáveis, significa a prevalência da vontade do mais forte sobre o mais fraco.

Seguramente, foi por esse motivo que a defesa do acusado ergueu a tese do prejulgamento da lide, tese que haverá de ganhar vigo, qualidade e consistência nos tribunais de apelação, notadamente quando for demonstrado pela defesa o seguinte:

1. Que a condenação foi decidida em apenas 4 (quatro) meses após a instrução;

2. Que é válido arguir que, em havendo, nos autos, razões objetivas que demonstrem ter o magistrado perdido o indispensável distanciamento dos interesses em jogo na disputa processual, é de se reputá-lo suspeito;

3. Que o juiz substituto pareceu magoar o principio do contraditório ao aceitar, do lado ativo do processo, um Parquet tão inteiramente comprometido com o pretenso direito subjetivo da acusação inicial;

4. Que paira sobre as sombras desse processo a fundada suspeição de parcialidade do julgador, afinal, se a parte alegou razões objetivas para não crer na imparcialidade do julgador, é de rigor que o Estado de Direito o assegure que o processo seja presidido por outrem;

5. Que é cristalina a exacerbação do juízo de admissibilidade de culpa do jornalista, admissibilidade que induziu de imediato o prejulgamento de uma demanda suprareal, que tem como prova material (pasmem senhores juristas honrados do Brasil) uma crônica ficcional, e como prova imaterial única de um crime que não se consumou, nem mesmo ficticiamente, o subjetivismo intencional da acusação;

6. Que os esforços interpretativos das testemunhas de acusação não bastam para provar o animus injuriandi, nem mesmo que tenham conseguido fazer as elucubrações mais verossímeis entre os personagens de uma ficção, com aqueles que na vida real vestiram a carapuça ou foram caricaturados por terceiros;

7. Que a decisão do juiz pautou-se na vertente mais estéril do Direito, ou seja, na negação completa de provas objetivas e, por falta destas, validaram como provas as ilações, suposições e deduções, e o fizeram a partir de um fio de intersubjetividades interessadas que foram se aderindo a um sistema de compreensão totalmente dependente de fatores externos ao Direito, tais como: a situação política de um estado que tem o Poder Executivo e o Poder Judiciário controlados por membros da mesma família; a motivação das testemunhas arroladas, cujos depoimentos acabaram perspassando - indo e vindo – para a dimensão política local; e as formas de cooptação e de controle repressivo da imprensa, essas conhecidas fórmulas silentes que objetivam retirar do jornalista a sua autonomia intelectual e moral, ou algo que pode e deve estar no seu domínio, como por exemplo: a informação, a capacidade e a coragem de exercer interferências críticas contínuas sobre a consciência social, notadamente em um estado precarizado em ofertas de serviços públicos de qualidade, e controlado por políticos que muitas vezes pretendem conformar o pensar, o sentir e o agir da sociedade, como é o caso de Sergipe e do Brasil nos tempos que correm. 

Poder-se-ia arguir o sentenciante acerca do motivo pelo qual ele, entronado como juiz-substituto, transpôs a juíza titular da Vara e inseriu nos autos o seguinte juízo: A juíza, em sua decisão de fls. 58/61, não avançou além dos limites que lhe são deferidos, mas apenas elencou os motivos que a levou a entender pela existência de indícios de autoria e materialidade, referindo-se às provas dos autos, sem emitir qualquer juízo de certeza acerca da autoria do crime. 

E neste ponto a que chegamos, peço venha para cuidar do fundamento literário, que foi precariamente considerado nos autos, e inicio afirmando que a crônica ou o conto em foco, é, verdadeiramente, a única prova material que embasa a inutilidade desse ato de acusação, e a condenação imposta pelo sentenciante, a partir do fato causador da demanda, no caso, o texto literário e o depoimento de quem se sentiu atingido, constituem, como afirmou Émile Zola no seu célebre J’ accuseum prodígio de iniquidade capaz de envergonhar até mesmo aqueles que gostariam de condenar um autor por meio de ato jurídico imperfeito. 

O ato condenatório em foco é imperfeito porque ignora que a Prosa, assim como a história e os compêndios processuais, são estruturas quase sempre possíveis de traduções para outros sistemas semióticos, sendo o mais vulnerável aquele sistema destituído de uma fronteira clara entre a arte e realidade. 

Ao lermos ficção, significa aceitarmos um acordo prévio e tácito, no qual as palavras dão sentido a uma infinidade de fatos e ações dramáticas que aconteceram, estão acontecendo ou vão acontecer no solo ficcional. Se há ou não proximismo entre uma peça de ficção e um fragmento de realidade, pelo menos aceitemos que a ficção têm a função suprema de realçar o tumulto concreto e real da experiência humana, conquanto o modo como aceitamos os fatos ficcionais, não diferem tanto de como aceitamos os fatos reais. 

Afirmo isso com conhecimento de causa porque, numa obra de ficção, a noção de verdade não é questionada pelo leitor, enquanto que no mundo real, muitas verdades são lúdicas, transitórias e movediças. Os discursos contraditórios do ex-presidente Lula da Silva (ora ataca um adversário, ora a ele se alia) são bons exemplos de verdades lúdicas e transitórias para seus eleitores e no entanto, se ele se sentisse ofendido pelas verdades verdadeiras que circulam na web, não haveria espaços nos tribunais do Brasil para tantos processos. 

Inobstante as luzes já lançadas sobre a escuridão do processo em foco, afirmo que é preciso que haja uma cumplicidade entre autor e leitor para que a literatura cumpra a sua função. Umberto Eco defende que as intenções das ações literárias durante a leitura são construídas muito mais pelo leitor do que pelo autor, e é desse modo que a cumplicidade se completa. Citarei apenas dois exemplos metafóricos para ilustrar melhor a questão:

1. Certa manhã, ao despertar de sonhos agitados, Gregor Samsa se viu transformado num inseto gigantesco. Ou acreditamos nisso, ou temos de jogar fora toda a Metamorfose de Kafka.

2. As testemunhas fingem que dizem a verdade, e a audiência finge que as confissões e narrativas são verdadeiras. Se alguém acredita em tais testemunhas, resta-nos acreditar também que a imaginação amplia os sentidos porque o real e muito restritivo.

Nesse aspecto, há consenso entre os autores de que, o que caracteriza um texto ficcional é a sua função estética, e essa função que faz com que as pessoas o interpretem a seu modo, de acordo com as suas abstrações, percepções, vontades ou capacidades intelectuais. Ora, motivar o leitor a interpretar um texto literário de acordo com os seus contextos intelectuais e morais, é a função primordial da literatura, e é para esse fim que literatura existe. 

Mas, se por ventura pairar alguma dúvida sobre o enunciado, convém que se olhe para esse acúmulo de fatos, patifarias e desmandos reais que vão ocorrendo cotidianamente à grande velocidade, num proximismo que beira o absurdo, e então poder-se-á ver como nenhuma ficção seria capaz de comportar ou de reproduzir fielmente tantos episódios que degradam a vida social real. 

E agora, falando aos iniciados mais enrijecidos quanto a existência de um hiato entre ficção e jornalismo e a influência de ambos na configuração do real, sugiro que retomemos os estudos teóricos ou científicos mais respeitáveis, ou mesmo os compêndios da História Universal, e tentemos separar no conteúdo das objetivações e das representações narrativas, o que é tomado por real, daquilo que é ficção do autor. 

Logo aí veremos que a História, mesmo sujeita às mais frias análises, comporta audazes fabulações, manobras, acréscimos, conveniências, pois que é composta de palavras ordenadas, e de sequências de fatos, feitos e desfeitos dramáticos, repartidos em espaços, tempos e categorias, os quais, numa ação recíproca das intenções intelectuais, vão delineando os perfis dos heróis, suas proezas e mentiras, e é natural, nessa formidável máquina de sedução, que alguém saia do mundo real para um mundo ficcional ou vice-versa, quando então é possível que se atinja situações mentais em que a sua credulidade ou incredulidade muitas vezes cai por terra. 

Ademais, mesmo que o autor assumisse ingenuamente a culpa pelo fato de alguém haver transplantado sua crônica ficcional para o plano real, de modo que a acusação conseguisse visualizar a carapuça de algum personagem transitando nas fronteiras desses dois mundos (da ficção e o mundo real), é cabal essa ligação entre o desembargador, Edson Ulisses Melo e o governador, Marcelo Déda (PT), ligação que se completa, não penas pela obviedade da relação familiar (são cunhados entre si), mas pela relação institucional concreta, pois o primeiro representa o poder executivo, e o segundo representa o poder judiciário daquele Estado, poderes que podem, sim, eventualmente se promiscuírem por excesso de representação familiar (no Brasil há centenas de exemplos) e por isso mesmo podem ser criticados pela imprensa e pelo contribuinte, inclusive citando nomes, datas e circunstâncias, afinal, tanto o desembargador, Edson Ulisses Melo, quanto o governador Marcelo Déda (PT), são funcionários públicos muito bem remunerados com o dinheiro do contribuinte. Destarte, o acusado é jornalista e o jornalismo é uma alternativa à versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade, alternativa que deveria ter garantia do seu espaço para expressar o pensamento crítico em qualquer situação ou contingência.

A condenação do Dreyfus sergipano corre o mundo e foi qualificada pela Reporters Without Borders como uma insanidade judicial” que insulta os princípios básicos da Constituição Democrática de 1988” ou no original: It is a judicial insanity that insults the basic principles of the 1988 democratic constitution.

Por se tratar de uma condenação em primeira instância, com certeza será reformada e anulada, podendo o jornalista recorrer às instâncias superiores e às Cortes Internacionais de Direitos Humanos, afinal, o sentenciante ignorou solene o Regime Constitucional da Liberdade de Imprensa como reforço das liberdades de manifestações do pensamento, de informação e de expressão em sentido genérico, de modo a abarcar os direitos à produção intelectual, artística, científica e comunicacional. 

Eu concluo a minha participação modesta em defesa da Democracia, do Direito, da Justiça-Justa, da liberdade de idéias, de pensamento e de expressão, contradizendo a raquítica abordagem hermenêutica feita às avessas pelo julgador da lide sobre “liberdade, literatura, crime e castigo”, parafraseando um despacho  exemplar, do ilustre Desembargador Federal, Dr. Paulo Roberto de Oliveira Lima, assentado nos autos de um processo de Execução de Suspeição de um juiz federal, nos seguintes termos: O juiz não tem o dom da ubiqüidade, de aí por que, aquele que passa a atuar como parte, deixa vazio o lugar de juiz. 

Portanto, diante das flutuações jurídicas, das múltiplas interpretações de juízo, da ausência completa de provas sólidas (a prova é como uma seta, ou atinge o alvo, ou perder-se-á nas profundezas das consciências) e também em respeito aos princípios constitucionais que embasam a Democracia, a Justiça e a dignidade humana, entendo eu que o sentenciante tinha o dever republicano de fazer prevalecer no seu julgamento tempestivo e inconsequente, um ancestral fundamento do Direto, que alude e expressa um dos princípios jurídicos mais sólidos, o da presunção da inocênciain dubio pro reo, de cujo sentido exato é: na dúvida, a favor do réu
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Ruy Câmara é romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de:

CANTOS DE OUTONO, o romance da vida de Lautréamont, Ed. Record; traduzido e publicado em 58 países 

THE LAST SONGS OF AUTUMN - The Shadowy Story of the Mysterious Count of Lautréamont 

LES DERNIERS CHANTS d'AUTOMNE: La Vie Mystérieuse et Sombre du Comte de Lautréamont 

CANTOS DE OTOÑO, Novela de la Vida de Lautréamont 

CANTECE DE TOAMÑA 

Literary Prizes
Jabuti Prize 2004 - First Finalist - Brazilian Book Chamber
Prize for Fiction-Brazilian Letters Academy - Best Novel - 2004
Prize for Translation - Writers' Association of Bucharest - 2009

Site Oficial do Autor: www.ruycamara.com.br

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