Na praia de Iracema, área tradicional de lazer dos moradores de Fortaleza e antigo centro da boemia da cidade, tapumes tomam vários metros da rua dos Tabajaras, bem pertinho do mar e da histórica Ponte Metálica, chamando a atenção de quem passeia pelo calçadão. Lá dentro, guindastes, britadeiras e tratores trabalham em ritmo acelerado. Na praia, quase não se vê mais banhistas. Isso porque, segundo moradores locais, a areia e o mar contém pedaços de ferro e concreto restantes da demolição do antigo prédio do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), que dará lugar a um projeto ambicioso – há quem diga megalômano – do governo do estado do Ceará: o Acquario Ceará, orçado em mais de 260 milhões de reais, (a previsão atualizada pelo TCE é de mais de 285,7 milhões).
Desse total, 210 milhões de reais são provenientes de um empréstimo da agência do governo americano Ex-Im Bank ao governo estadual – o restante de recursos próprios do Estado – para financiar a obra de 21,5 mil metros quadrados de área construída com previsão de 38 tanques com capacidade para 15 milhões de litros de água, quatro pavimentos de áreas de lazer, dois cinemas 4D, simuladores de submarino e túneis submersos. A previsão é que a obra fique pronta a tempo da Copa do Mundo de 2014.
Apresentado em 2010 com pompas e uma bela maquete no espaço cultural Dragão do Mar – outra obra grande e polêmica de Fortaleza – o projeto logo despertou a indignação de artistas, professores, historiadores e, principalmente, dos 2.400 moradores da comunidade centenária Poço da Draga, próxima ao local, que até hoje não tem saneamento básico. O discurso da Secretaria de Turismo, de que o Acquario (se escreve assim mesmo) “deve dobrar o fluxo turístico do Ceará e inseri-lo tanto no circuito mundial de grande ícones arquitetônicos, quanto no de turismo científico, sendo o terceiro maior aquário do mundo”, não convenceu a população que se organizou no movimento “Quem Dera Ser um Peixe”, paródia da musica do cantor e compositor cearense Fagner, para contestar o investimento público em uma obra faraônica enquanto o estado do Ceará convive com um dos períodos de seca mais devastadores dos últimos tempos.
“É um trocadilho mesmo para dizer que os peixes são mais bem tratados do que as pessoas”, explica a historiadora Andrea Saraiva, integrante do movimento. “A gente critica a falta dos ritos básicos para um investimento e a obra desse porte: desde a falta de discussão pública, até a falta de informações claras e da transparência com relação às contas públicas, por exemplo”, explica a historiadora, acrescentando que a primeira providência da organização popular foi buscar informações sobre o projeto.
“Qualquer um que olhe para aquele projeto e para este espaço na praia de Iracema vai perceber que para começar aquilo não cabe aqui! O prédio ao lado já enfrenta rachaduras e infiltrações [por causa da obra]”, diz a coreógrafa Andrea Bardawil, também integrante do Quem Dera, que resume as irregularidades encontradas até agora: a falta de um estudo de impacto arqueológico, obrigatório em obras de grande porte, lacunas e imprecisões no EIA-RIMA, de acordo com especialistas, falta de licitação para a obra – o que também é questionado pelo TCE – e o futuro incerto da comunidade do Poço da Draga.
Ao entrar com esses questionamentos e o pedido de paralisação da obra na Justiça, porém, foi o movimento popular que acabou sendo processado pelo Governo do Estado por “litigância de má fé”, amparado no fato de o Iphan já ter entrado com uma ação com o mesmo pedido. Procurado, o Iphan não quis se pronunciar sobre o assunto.
Cadê a licitação?
No dia 26 de maio de 2011, a Secretaria de Turismo do Estado (SETUR), através de seu titular, Bismarck Maia, anunciava no Diário Oficial do Estado do Ceará a inexigibilidade de licitação para a construção do Acquário – anunciando a contratação direta da International Concept Management INC. (ICM-Reynolds) por R$ 244.335.000,00 (o equivalente, à época, a US$ 150.000.000,00). Baseado no caput e no inciso II do artigo 25 da Lei de Licitações, o governo cearense alegava que se tratava de uma contratação de “serviços técnicos singulares” de uma empresa de “notória especialização”.
Para fundamentar essa argumentação, o governo cearense apresentou um Estudo de Técnica, Qualidade e Preço feito por outra empresa, a Imagic!, afirmando que a ICM-Reynolds havia construído 215 dos 250 “aquários de grande porte” do mundo, segundo a Waza (World Association of Zoos and Aquariums). A Imagic!, que realizou esse estudo, pertence ao arquiteto Leonardo Fontenele – autor do projeto arquitetônico do Acquário Ceará pelo qual diz ter recebido R$ 1,8 milhão.
Sete dias depois do anúncio da SETUR, no dia 2 de junho de 2011, o governo estadual enviou à Assembleia Legislativa do Estado do Ceará o pedido de aprovação de um empréstimo de US$ 105 milhões junto ao Ex-Im Bank (sigla para Export-Import Bank of the United States), uma agência governamental que atua como intermediária entre bancos e tomadores de empréstimos com o objetivo de fomentar exportações dos Estados Unidos: ao menos 50% do dinheiro emprestado através dessa agência tem de ser gasto na importação de produtos americanos.
O empréstimo foi aprovado na Assembléia Legislativa cearense, apesar dos protestos de algumas vozes da oposição contra o fato de a votação ocorrer depois de já definida a contratação da ICM-Reynolds por inexigibilidade. “Há de se perguntar, vamos votar o que se as coisas já estão definidas antes da votação? Portanto eu acho lamentável esse episódio”, disse na saída da votação o deputado estadual Heitor Ferrer (PDT) à TV Jangadeiro. Mesmo na base aliada do governo estadual, a deputada estadual Eliane Novais (PSB) se mostrou contrária à votação e à construção do aquário: “Nós temos outras prioridades. Nós podemos investir esse mesmo dinheiro, por exemplo, no sistema de esgotamento sanitário de Fortaleza, que está obsoleto”, disse, também na saída do pleito. A votação virou a lei 14.937, de 22 de junho de 2011, que autorizou o poder executivo estadual a contrair o empréstimo através da agência dos Estados Unidos.
TCE acata denúncia dos movimentos sobre irregularidades na licitação
Inconformados com esse desfecho, os militantes do movimento Quem Dera Ser Um Peixe reuniram tudo o que conseguiram obter de informações sobre o projeto e o empréstimo para a construção do Acquario Ceará e, no dia 7 de abril de 2012, enviaram uma denúncia com as irregularidades encontradas ao Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE). Oito meses depois, em dezembro de 2012, a Comissão Especial de Acompanhamento e Fiscalização de Obras de Grande Porte do TCE apresentou o Relatório de Inspeção Nº 0011/2012, confirmando e reforçando diversos pontos apresentados na denúncia do movimento popular, principalmente em relação à contratação da ICM-Reynolds por inexigibilidade, que não estaria de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei de Licitações.
“O próprio governo do estado admite que há outras empresas, além da contratada, que constroem aquários (…). Verifica-se, portanto, que as próprias fontes oficiais sobre o aquário admitem a possibilidade de competição (…) Conclui-se que não é cabível a utilização do instituto da inexigibilidade para a contratação da empresa ICM, pois a licitação para a realização da obra é obrigatória tendo em vista a possibilidade de competição”, afirmava a denúncia. O relatório do TCE concorda: “Registre-se que a contratação da ICM-Reynolds não tem guarida normativa na eleita hipótese de inexigibilidade de licitação (…), uma vez que existem diversos fornecedores de materiais e equipamentos para oceanários e aquários no mundo”.
O TCE vai além: “É forçoso concluir que há indícios de irregularidades na contratação da empresa ICM-Reynolds para fornecer todos os bens, serviços e materiais para os equipamentos e a construção do empreendimento ‘Acquário Ceará’. Essa contratação deveria ter sido precedida de um processo licitatório, que permitisse à Administração Pública a possibilidade de escolher a proposta mais vantajosa, não sendo cabível, desta forma, a inexigibilidade (…)”. Para o TCE, a “argumentação da natureza singular da ‘construção’ Acquário” – por parte do governo – “igualmente, não se sustenta, haja vista ser apenas ‘mais uma obra’ dentre as centenas de aquários do mundo.”
“É bom destacar que as informações, que subsidiaram a escolha e contratação direta da empresa ICM-Reynolds, não restaram devidamente comprovadas”, continua o documento produzido pelo Tribunal de Contas a respeito do estudo da Imagic!, do arquiteto Leonardo Fontenele, que fundamentou a argumentação do governo. O que, segundo o movimento Quem Dera Ser Um Peixe, deve-se a um “conflito de interesses”: “É um absurdo que o mesmo cara responsável pelo projeto arquitetônico do aquário, o Sr. Fontenele, tenha também ficado responsável pela qualificação técnica dele. É óbvio que há conflito de interesses. Fora que a empresa dele não tem a menor experiência na construção de aquários, é só olhar o portfólio da Imagic!”, argumenta a historiadora Andrea Saraiva, integrante do Quem Dera Ser Um Peixe.
No relatório, o TCE desmontou a argumentação principal do estudo da Imagic!, de que dos 250 grandes aquários do mundo 215 foram feitos pela ICM-Reynolds: “A Comissão de Fiscalização não conseguiu aferir a participação da ICM-Reynolds na construção das obras citadas pela SETUR, já que essas informações não estão em seu portfólio, no sítio da internet, nem anexas no processo de inexigibilidade”. Após a análise do site da World Association of Zoos and Aquariums (Waza), o relatório aponta que não há referência sobre a participação da ICM, ou de qualquer outra empresa, na concepção, projetos ou construção dos aquários no seu sítio eletrônico”. O TCE vai além, afirmando que o Georgia Aquarium, na cidade de Atlanta (EUA), citado pelo estudo da Imagic! como obra da ICM-Reynolds foi, na verdade, feito pela empresa Brasfield & Gorrie of Kennesaw. Por fim, conclui que “a manifestação de inviabilidade da competição é dubitável, uma vez que, a princípio, não há comprovações que fundamentem que a ICM-Reynolds seja a mais apta para a construção do Acquário Ceará. Pelo contrário, (…) os maiores e mais modernos aquários do mundo foram construídas por outras empresas (…)”.
O empréstimo questionado
Quanto ao empréstimo contraído pelo governo cearense junto ao Ex-Im Bank, o movimento Quem Dera Ser um Peixe acusa: o contrato com a ICM foi feito por inexigibilidade para que o governo pudesse tomar o empréstimo com a agência americana. Segundo a denúncia, as condições do empréstimo contrariam a Lei de Licitações brasileira ao estabelecer que 50% dos recursos sejam gastos em produtos dos Estados Unidos, pois o inciso I, do primeiro parágrafo da Lei estabelece: “é vedado aos agentes públicos admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes”. Ou seja, caso ocorresse a licitação ela estaria em conflito com as condições estabelecidas pelo Ex-Im Bank.
O movimento Quem Dera Ser Um Peixe também acusa o governo cearense de ter infringido o artigo 7º da Lei de Licitações, que estabelece que os órgãos públicos têm que ter definidos todos os recursos para pagamento de obras e serviços antes da realização de licitações e contratações por inexigibilidade – o empréstimo com o Ex-Im Bank foi firmado depois da contratação da ICM-Reynolds. Mas, segundo o promotor Gleydson Alexandre, do Ministério Público de Contas do Ceará, que pediu para realçar que falava “em tese”, sem os autos do processo na mão, “isso ainda carece de uma investigação e de uma avaliação por parte do Tribunal”.
Após o relatório do TCE, a 7ª Inspetoria de Controle Externo (ICE) do TCE-CE ficou encarregada de fazer uma análise das questões que envolvem a obra do Acquário Ceará. No dia 7 de maio passado, a 7ª ICE determinou um prazo de 30 dias para a manifestação do governo cearense acerca do relatório do TCE.
Cadê o estudo arqueológico?
Também o EIA-RIMA (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) do Acquario feito pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) é inconsistente e impreciso, segundo o biólogo Daniel Santos da Silva. A começar pelo fato de o estudo ter sido feito depois da demolição do prédio do DNOCS para dar lugar ao empreendimento: “O EIA já deveria ser elaborado para a demolição do prédio do DNOCS seguida da construção do “Acquário”, ou seja, não poderia ser permitida a demolição – pelos órgãos ambientais – antes da apresentação de um estudo que contivesse não só os impactos da demolição, como também, da construção e utilização do aparelho em citado”.
Outro ponto preocupante, na avaliação do especialista, é o risco de mistura acidental das águas, no caso de a maré atingir o calçadão que margeia a estrutura. Ele explica que a análise da série de marés que consta do EIA não é confiável porque se refere apenas a maio e junho de 1995: “Os dados refletem um restrito espectro de tempo e podem estar completamente defasados, tendo em vista que se referem a medições feitas há mais de 15 anos”, diz o biológo. No caso de haver entrada de água do mar no Acquario, isso aumentaria o risco de bioinvasão, o que seria devastador para os ecossistemas nativos. Aliás, segundo um comunicado obtido pelo Quem Dera Ser um Peixe através da Lei de Acesso à Informação, a fonte de abastecimento hídrico do empreendimento ainda não havia nem sido decidida. Quanto ao descarte de animais mortos e das águas do Acquario, não há nada previsto no EIA, que se limita a pedir atenção para o assunto. O Copa Pública pediu essas informações à Setur , mas não obteve resposta.
A falha mais grave do EIA-Rima porém, que inclusive fez com o Ministério Público Federal recomendasse a paralisação da obra em 2012, foi a falta de estudo arqueológico, necessário a qualquer obra deste porte de acordo com a resolução 001/86 do CONAMA. A obra chegou a ser paralisada durante 83 dias por causa da recomendação do MPF mas o Governo do Estado conseguiu reverter a determinação. “Eles justificaram dizendo que lá já era uma área ocupada e portanto não havia necessidade de um estudo arqueológico. Assim conseguiram uma autorização judicial para dar andamento” explica a procuradora do Ministério Público Federal no Ceará, Nilce Cunha Rodrigues.
Em fevereiro de 2013, o MPF entrou com outra ação civil pública, alegando que deveria ser o Ibama e não a Semace o responsável pelo licenciamento ambiental. “Nós consideramos que o impacto da coleta e dispêndio da água utilizada é muito grande na biota marinha, algo difícil de mensurar, e indicamos que quem deve fazer este licenciamento é o Ibama. Mas o juiz não concedeu a liminar para paralisar a obra até que esse licenciamento fosse revisto” explica Nilce. “Houve um agravo para o Tribunal da 5a região e estamos aguardando. Não tendo a liminar, a obra continua. O problema é que se ficar decidido que o licenciamento é nulo, o prejuízo já foi causado!”, observa a procuradora.
E o Poço da Draga, como fica?
“Desde que me lembro, a gente sofre ameaças de remoção por estar em uma área nobre, perto da praia. O medo agora aumentou com esse Acquario. Você acha que eles vão querer uma coisa chique dessas ao lado de uma comunidade carente?”, questiona Ivoneide Gois, 48 anos de idade, todos vividos na comunidade do Poço da Draga, que acaba de completar 107 anos de existência. Apesar de não haver comunicação oficial sobre uma possível remoção da comunidade de 2400 moradores da praia de Iracema, eles temem uma investida surpresa.
E há motivos mais concretos para esse receio do que as especulações levantadas pela localização da comunidade carente. Segundo o geólogo e morador do Poço, Francisco Sérgio, a regulamentação da comunidade como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) já deveria ter sido oficializada mas foi cancelada há pouco tempo: “ É claro que isso aumenta nosso medo! Mas a comunidade, assim como o Acquario, estão em área de União e o Poço é parte da cultura e história de Fortaleza. Não vai ser tão fácil tirar a gente daqui”.
Ivoneide faz a comparação irônica e inevitável: “Enquanto o governo vai gastar esse dinheiro e mais de 15 milhões de litros de água com o Acquario, o Poço da Draga não tem saneamento básico. Quem dera ser um peixe, né?”
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