O LÉXICO E A ORTODOXIA
Ainda temos o index de livros proibidos.
Uma aluna que transitava pelos corredores conduzindo um livro politicamente
“herético”, foi repreendida e ameaçada, advertida de que o seu futuro seria
prejudicado. A ameaça foi concretizada anos mais tarde, quando a moça foi
prejudicada. A ortodoxia ideológica é rigorosa. Hoje temos palavras sacrílegas,
incidindo até sobre formas gramaticais, como a linguagem neutra. Temos a
novilíngua de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 – 1950) na obra “1984”.
Contendores de lutas políticas nunca foram muito escrupulosos. Quando, porém,
apelam para expedientes que ultrapassam os limites da competição,
caracterizando-se como conflito, as instituições correm perigo.
Competidores observam regras e podem até
cooperar entre si, como vestibulandos que auxiliavam competidores com “pesca”
ou “cola”. O objetivo na competição não é a destruição do concorrente.
Conflitos, porém, não são abertos à cooperação, não observam regras e têm como
objetivo destruir ou submeter o inimigo. O entendimento é muito mais difícil
nos conflitos. Sem um mínimo de entendimento a democracia corre perigo. Reais
ameaças não devem ser ignoradas em nome da paz. A intolerância é a fonte ou a
expressão dos conflitos (John Locke, 1632 – 1704, na obra “Cartas sobre a
tolerância). O limite da tolerância é a intolerância do outro (Karl R. Popper,
1902 – 1994, na obra “Universo aberto, sociedade aberta”), que justifica o
conflito ou jus ad bellum (Cícero,
Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Hugo Grotius).
Michel Foucault (1926 – 1984), na obra
“As palavras e as coisas”, descreve o controle social e os processos de
dominação. O controle do léxico é o destaque. A crítica de José Guilherme Merquior
(1941 – 1991), na obra “Michel Foucault ou niilismo de cátedra”, recrimina o
pensador francês por terminar suas análises no ponto em que deveria iniciá-las,
ao concluir seus estudos com o registro da omnipresença do controle social,
vigilância e repressão. Tal deveria ser o início, na visão de Merquior, pois se
trata de aspecto consensual. Distinguir entre os diferentes graus de controle,
repressão e meios usados para tanto, aquilatando a relativa legitimidade deles
é que deveria ser o começo.
Resta a advertência de Foucault para o
controle das palavras e suas relações com as coisas. Fala-se muito em
democracia, (des)igualdade, diversidade. Falta clareza quanto ao significado
destas e de outras palavras centrais nas doutrinas. Igualdade, para José D’Assunção
Barros (1957 – vivo), na obra “Igualdade e diferença”, pode ser de todos em
tudo, de todos em algo, de alguns em tudo ou de alguns em algo. Isso não é
analisado por quem invoca em vão o “santo” nome da igualdade, seja para evitar possíveis
problemas para os quais não teria resposta, seja por desconhecer os problemas
decorrentes destas diferenças. A manipulação emocional foi denunciada com farta
documentação por Pascal Bernardin (1960 – vivo) na obra “Maquiavel pedagogo”.
Trata-se de afastar conteúdos, substituindo-os por sensibilização emocional
mediante o emprego de técnicas psicológicas. O virtuoso objetivo seria
transformar o homem em algo melhor. O meio usado seria leva-lo a repetir
palavras e doutrinas cujo significado desconhece.
Deixar de explicitar o
sentido de palavras protege da crítica. Invocar princípios virtuosos facilita o
proselitismo. Magistério, jornalismo, doutrinas políticas, sociais, econômicas
e jurídicas passam a ser objeto de catequese, transformados em religiões
políticas. O bem contra o mal, nas pregações supostamente seculares, sem exame
consciente, alegando que a filosofia quer entender o mundo, mas o que é preciso
é transformar o mudo [sem precisar entende-lo], conforme palavras de Karl
Heinrich Marx (1818 – 1883), resulta em imunização cognitiva.
Fortaleza, 9/2/22.
Rui Martinho Rodrigues.
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