OS ARAUTOS DA REVOLUÇÃO CULTURAL
As transformações históricas
As profundas transformações históricas das
décadas recentes merecem mais atenção por parte de todos. Reconhecemos que na
origem da revolução cultural em curso, encontramos a influência da mobilidade
geográfica, com os fluxos migratórios e o turismo em grande escala; a
secularização da cultura; a banalização resultante da transformação dos mores
em folkways e a sociedade líquida descrita por Zygmunt Bauman (1925 – 2017); as
novas tecnologias que promovem uma inundação de informações – nem sempre
qualificadas – em tão grande volume que não podem ser processadas, como dito em
alguns dos nossos textos.
Os arautos das transformações culturais
Os diversos fatores citados não exercem
o mesmo grau de influência sobre a mudança cultural, variam em momentos
diferentes e de sociedade para sociedade. A ação dos arautos da revolução
cultural é relevante. Eles impulsionaram a (i) difusão da cultura
letrada aproveitando-se da escolarização universal para fazer proselitismo,
conforme denúncia de Pascal Bernardin (1960 – vivo), na obra Maquiavel
pedagogo. Contribuíram para (ii) a vulgarização e simplificação de
informações sobre fenômenos complexos, divulgando versões vulgares de autores
clássicos, conforme Leandro Konder (1936 – 2014), na obra A derrota da
dialética. Tais informações foram, muitas vezes, eivadas de reducionismos. Exploraram
mágoas, sentimentalismo, vitimização, introduziram maniqueísmos e messianismos
seculares. Tudo isso foi levado a cabo por (iii) intelectuais,
professores, artistas e celebridades. Estes são os aspectos que examinaremos a
seguir.
A dinâmica da revolução cultural
A modernidade trouxe a liberdade de
agir, sem a qual não há liberdade de consciência. A dessacralização, também
revigorada pelo humanismo do renascimento, restringiu o argumento de
autoridade, favoreceu o livre exame, a crítica e a busca do conhecimento. Todas
as doutrinas, porém, têm as suas aporias. Afastado o dogmatismo, a solução para
os impasses que o debate racional não resolve só encontra solução na
negociação, na força ou por escolha da maioria. Os gregos escolheram substituir
a violência pela escolha racional, debatendo na ágora para votar em seguida
(Olivier Nay, na obra História das ideias políticas). A democracia dava
assim o seu primeiro passo.
A Revolução científica do século XVII,
com os seus grandes triunfos, introduziu a noção de ciência como um
conhecimento diverso da Filosofia, que uniu a observação à razão, corrigindo os
próprios erros. O debate sobre os problemas sociais e políticos tomou de
empréstimo o rótulo de ciência. Não podendo replicar experimentos como uma
revolução, o pensamento social logo escorregou da ciência para o cientificismo.
Propostas de reengenharia social e antropológica reivindicaram o status
de ciência ou, no mínimo, de pensamento “esclarecido” ou representante de algo “superior”,
“evoluído” sob a designação de “progressismo”.
O Iluminismo, valendo-se destes
argumentos, defendeu a liberdade, a igualdade e fraternidade. Ajudado pelas
técnicas que facilitaram a difusão de ideias: a imprensa de Johannes Gutenberg (1400
– 1468), que viabilizou os jornais e as enciclopédias com as quais o movimento
político encetado por intelectuais logrou fazer a Revolução Francesa.
A revolução aludida trouxe a
“fraternidade” da guilhotina e da violência que tem como exemplo maior o
massacre de Vendeia (1793), revolta camponesa violenta e contrarrevolucionária
que foi esmagada com brutalidade extrema, deixando um saldo estimado entre cem
e duzentos e cinquenta mil mortos, mas que foi esquecida pelos intelectuais.
Promoveu a liberdade para os que concordavam com ela e a igualdade de alguns em
algo, distinção feita por J. D’Assunção Barros (1957 – vivo), na obra Igualdade
e diferença), desequiparando revolucionários e vários segmentos sociais.
Culminou com o período que passou para a História como o “reinado do terror”,
sob o domínio dos Jacobinos, que eram os revolucionários mais entusiastas. J.
Guilherme Merquior (1941 – 1991), em verbete no Dicionário crítico da
Revolução francesa, mensionou centenas de milhares de mortos como o número
de vítimas da revolução em apreço.
Finalmente a ordem foi restabelecida com
o golpe napoleônico. Mas a promessa já não era de igualdade. A nobreza foi
reintroduzida junto com a monarquia. A Revolução, apesar de crudelíssima, é
amada pelos (de)formadores de opinião, apesar da violência que protagonizou e
do fracasso em introduzir a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Comparada
com a Revolução que ocorreu cem anos antes na Inglaterra, a dos franceses perde
constrangedoramente.
A revolução inspirada por John Locke
(1632 – 1704), ao norte do Canal da Mancha, não fez massacres e contribuiu mais
para a liberdade de agir e de todos em algo, sem tanta efusão de sangue. A
Revolução de 1688, na Inglaterra, foi feita para submeter o Estado à Sociedade,
por isso foi liberal. A Revolução Francesa de 1789 foi feita para que o Estado “corrigisse”
a sociedade, retirando dela os institutos jurídicos e políticos medievais, por
isso não era liberal, por mais que os simpatizantes digam o contrário.
A revolução Francesa passou para a
História como burguesa e liberal. Mas quem assediou a Bastilha, incendiou
cartórios e invadiu castelos por todo país foram os camponeses, não os
burgueses. Quem semeou no coração dos camponeses a promessa de igualdade,
liberdade e fraternidade também não foram os burgueses, mas os intelectuais,
muitos dos quais foram sustentados pela nobreza que seria decapitada por força
das ideias que admirou e financiou. Os revolucionários cortaram algumas despesas
do Estado, extinguindo prebendas e subsídios antes dados à nobreza e
extinguiram muitos privilégios. Isso pode ter servido de pretexto para que a
rotulassem como liberal. O Estado laico foi outro motivo.
O fervor revolucionário, porém, não é
tão laico. Religião é o que oferece (i) transcendência, (ii)
radicalidade e (iii) totalidade (Thomas O’Dea, na obra Sociologia da
religião). Os demiurgos da sociedade radicalmente nova se transcendem nas
lutas históricas por uma classe, pelo nacionalismo ou pela salvação da
sociedade como um todo. Desfrutam da radicalidade de doutrinas que explicam os
fenômenos históricos em geral desde a causa primeira. Alcançam assim a
radicalidade. “Explicam” tudo da origem ao fim, que é uma nova ordem. Doutrinas
revolucionárias ou progressistas são religiões políticas. As suas explicações
são semelhantes às das religiões, fato registrado por Raoul Girardet (1917 –
2013), obra Mitos e mitologias políticas. Raymond Aron (1905 – 1983)
ironizou a religiosidade dos demiurgos da reengenharia social e antropológica
na obra O ópio dos intelectuais.
Invocam em vão o “santo nome” da ciência
enquanto praticam o cientificismo, prometem a igualdade de ser, e mais a
igualdade positiva e a de resultados, embora instituindo a “Nova classe” que
deu título a obra de Milovan Djilas (1911 – 1995), fenômeno designado também
como nomenclatura, retratado na obra de Georg Orwell (1903 – 1950) A
revolução dos bichos. Mas não se preocupam com as liberdades negativas,
salvo quando estão na oposição. Prometem a fraternidade que pode variar da
guilhotina ao paredão, passando pelo sistema de gulag. Seduzem apontando
culpados para os infortúnios de todos, repetindo a promessa de superação da
pobreza sem esforço, pelo patrocínio do Estado, a semelhança do projeto da
Torre de Babel (Gênesis 11; 3-6), conforme comparação feita por Michael
Oakeshott (1901 – 1990). Sim, pretendem conquistar uma riqueza já existente. Não
tratam de produzi-la.
Os “engenheiros sociais”
nunca falam em investimento ou em produtividade, talvez porque a maioria deles
não entende os problemas ligados a estes temas. O objetivo é apropriar-se da
riqueza, como a Torre de Babel permitiria invadir e apropriar-se do céu. O meio
para tanto pode ser o da revolução violenta, como pode ser a conquista da
hegemonia ideológica, que legitima a “invasão” ou esbulho possessório, que
preferem designar por “ocupação”. Mas o domínio dos corações e mentes é assunto
para outra reflexão.
Fortaleza, 11/7/23.
Rui Martinho Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário