UMA REVOLUÇÃO CULTURAL
O mundo passa por uma revolução cultural
sem precedentes. Todos os papéis sociais, seja de filho e pai ou mãe; criança e
adulto; homem, mulher e estão surgindo outros gêneros; professor e aluno;
policial, juiz, líder religioso ou autoridade civil; mocinho ou vilão na
literatura, teatro, cinema e televisão, tudo mudou. A dinâmica dos
acontecimentos históricos que produziu a mudança aludida envolve uma enorme
quantidade de fatores, que passamos a apresentar. As reflexões que se seguem
ainda não são um estudo dos fatores citados, porque isso exigiria artigos
específicos. O que se segue é uma visão panorâmica preliminar ao estudo de
alguns dos aspectos da revolução cultural em comento.
Mobilidade geográfica,
tecnologias, urbanização e escolarização
A mobilidade geográfica e as
comunicações instantâneas estimularam um certo cosmopolitismo que abalou
padrões culturais de sociedades anteriormente menos expostas às influências
estrangeiras. Tal fenômeno deu lugar a expressão “aldeia global”, cunhada por
Marshal McLuhan (1911 – 1980). A urbanização acelerada impactou nos costumes
das populações que se deslocaram do campo para as cidades. A escolarização de
crescentes parcelas da sociedade e o acesso à cultura letrada potencializaram a
influência de artistas, intelectuais e celebridades, que sempre tenderam a
divergir dos padrões culturais estabelecidos.
Os grandes fluxos migratórios da atualidade,
somados aos milhões de viajantes, intensificam o multiculturalismo do tipo
interativo, não obstante as formas de multiculturalismo diferencialista também tenham
se fortalecido.
A dessacralização da
cultura
O ambiente secularizado ou dessacralizado
facilitou a banalização do que antes eram mores, agora transformados em
folkways, com o advento da instabilidade descrita por Zygmunt Bauman (1925 –
2017) na obra Modernidade líquida. Não surpreende que padrões culturais percam
prestígio. A diversidade das tendências históricas, todavia, proporcionou o
surpreendente fenômeno da revanche do sagrado, assim denominado por Leszek Kolakowiski
(1927 – 2009). Então o desmonte de valores tradicionais encontrou resistência
facilitada pelas redes sociais, que quebraram o controle da mídia tradicional,
monopolizada pela intelligentsia engajada na dialética negativa.
O projeto de refazer a sociedade e a
cultura encontrou resistência tardiamente por parte dos não convertidos.
Pretensão resistida tem o nome de conflito. As sociedades tornaram-se conflagradas.
Mas as objeções ao projeto demiúrgico vieram principalmente por parte da
parcela da sociedade que não foi catequisada, formada majoritariamente por quem
não foi “domesticado” pelos estudos formais, pela sofisticada cultura letrada,
que sabe sofismar de modo convincente, inclusive fazendo proselitismo no
magistério.
O exame da revolução cultural não
poderia ser feito abordando todos os fatores de uma vez. Examinaremos, nos nossos
próximos artigos o impacto do projeto de reengenharia social e antropológica,
aqui referido também como projeto demiúrgico.
O projeto demiúrgico
A difusão da ideia de que a
sociedade e o homem podem ser radicalmente transformados até atingir a
perfeição, se forem adotadas teses concebidas por pensadores havidos como
sábios e virtuosos, deram grande impulso ao movimento de destruição dos padrões
culturais estabelecidos. Os pensadores reconhecidos como senhores da verdade,
embora muitos deles neguem a existência de verdades, conseguiram seduzir as elites
intelectuais. Estas alimentam a ilusão de que, em uma sociedade radicalmente
nova, os intelectuais serão os dirigentes, como os reis filósofos da República
de Platão (427/428 – 327/328) que tanto elogiam. A desigualdade entre filósofos
e os demais integrantes da sociedade, na República de Platão, não constrange os
defensores da igualdade.
A precedência da sociedade sobre o
indivíduo, como se o homem devesse servir à sociedade (ao associativismo), ao
invés do associativismo dever servir aos associados (cidadãos), é um dos pontos
de destaque da sedutora narrativa sobre justiça, que promove também a aparência
de virtude, seguindo o conselho de Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), na obra O
príncipe, para quem o importante é aparentar virtude. A ilusão dos
intelectuais persiste, não obstante tenham sido preteridos pela elite política
e pela burocracia, em todas as experiências históricas em que o projeto
demiúrgico de reengenharia social e antropológica foi tentado. Contrariamente a
utopia cultuada pelos aspirantes a reis filósofos, o que historicamente tem
prevalecido é (x) a “lei de ferro da oligarquia”, enunciada por Roberto Michels
(1876 – 1936).
A adesão ao projeto citado é movida, em
muitos casos, pela busca de vantagens pessoais, como bolsa de pesquisa, sucesso
na seleção de programas de pós-graduação, concurso para o magistério
universitário, publicação em revistas universitárias conforme relata Luiz
Felipe de C. e S. Pondé (1959 – vivo), coisas controladas pelos dependentes do
“ópio dos intelectuais”, na descrição de Raymond Aron (1905 – 1983), em obra
cujo título é a própria expressão citada. Finalmente o despreparo intelectual
de muitos intelectuais, que os torna vulneráveis à catequese dos “diretores da
História”, que é como se sentem os candidatos a reis filósofos investidos da
capacidade criadora de demiurgos.
Sim, intelectual não é sinônimo de
sábio, nem de erudito, estudioso ou inteligente. Thomas Sowell (1930 – vivo),
na obra Os intelectuais e a sociedade, os define como integrantes da intelligentsia
(pessoas engajadas em movimentos políticos e artísticos, cujas ideias se
circunscrevem ao campo das abstrações). Observa o autor citado que um físico ou
um engenheiro nuclear necessariamente estudam muito, são pessoas inteligentes,
mas não são considerados intelectuais. É mais fácil um novelista, um poeta ou
ideólogo ser contado entre intelectuais. É preciso tratar de temas políticos ou
artísticos, voltando-se para as ideias abstratas, é preciso, ainda, se engajar
na intelligentsia.
As elites clericais
Gaetano Mosca (1858 – 1941), escrevendo
sobre doutrinas políticas, identificou, em todos os tempos e civilizações,
cinco grupos de poder: elite guerreira, sacerdotal, econômica, política e intelectual.
Quanto mais elites e maior a competição entre elas, menos autoritária a ordem
política. Quanto menor o número de elites, e quanto menor a competição entre
elas, mais autoritário o sistema político. A difusão das ideias pelos meios de
comunicação fortaleceu as elites política intelectual, hábeis em comunicação. O
surgimento dos jornais e enciclopédias guarda estreita relação com a Revolução
Francesa e uma série de outras revoluções tentadas ou consumadas. A era do
rádio coincide com uma “safra” de líderes entre os quais se incluem Vargas no
Brasil, Peron na Argentina, Roosevelt nos EUA, Hitler na Alemanha e tantos
outros.
Poucos tinham acesso aos textos dos
intelectuais, até que a imprensa facilitou a divulgação deles por meio de
enciclopédias e jornais. As grandes reformas religiosas, tantas vezes tentadas
sem sucesso, tiveram algum êxito quando a bíblia foi impressa em língua
vernácula.
As elites clericais em grande parte
também foram alcançadas pelo proselitismo dos intelectuais, parcela esta
vulnerável em razão das limitações cognitivas decorrentes do tipo de escola que
frequentaram (catequéticas), além de se deixarem levar pelos que invocam os
mais altos valores, como igualdade, liberdade, fraternidade, amor ou justiça,
que são conceitos indeterminados, com limites obscuros. Tal fragilidade se deve
ao modo como foram escolarizados e ao modo como a catequese é conduzida, por
vezes com técnicas de manipulação bastante elaboradas, conforme descrito na
obra Maquiavel pedagogo, de Pascal Bernardin (1960 – vivo). As elites
políticas em grande parte não têm preparo intelectual para enfrentar
proselitismo dos intelectuais. Finalmente o oportunismo de quem escolhe aderir
aos movimentos que parecem vitoriosos também motiva o apoio de grande parte do
clero ao projeto demiúrgico.
Elites militares
As elites militares, no Brasil, tendem a
seguir a tendência das parcelas mais influentes da sociedade, como aconteceu
quando proclamaram a República em 1889, quando desfizeram a Primeira República
em 1930, quando destituíram Vargas em 1945 e quando o levaram ao suicídio em
1954, ou ainda, como em 1964 reagiram às “reformas de base” e a fragilização da
disciplina militar claramente presente na Marinha, conforme relato de Celso M. Furtado
(1920 – 2004), na obra Fantasia desfeita. Nos dias atuais, o estamento
militar parece voltado para o profissionalismo, a liderança no meio castrense
tornou-se institucional e menos personalista, o que restringe as possibilidades
de um possível protagonismo político. A participação das elites militares na
revolução cultural tem sido bastante limitada.
Um estudo que pede
continuidade
As reflexões aqui
apresentadas são o esboço de uma visão panorâmica da revolução cultural em
curso. O estudo de cada um dos aspectos enumerados, a exemplo do papel de cada
uma das elites, dos impactos das inovações tecnológicas, da mobilidade
geográfica e demais fatores exigiria um trabalho hercúleo e muito mais espaço.
Deixemos algumas das análises referentes aos aspectos citados para os nossos
próximos artigos.
Fortaleza, 20/6/23.
Rui Martinho Rodrigues.
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