Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

domingo, 13 de janeiro de 2013

CRÔNICAS DE REGINA BARROS LEAL (Da Academia Cearense da Língua Portuguesa)


O CASARÃO

Regina Barros Leal
 

Silêncio no casarão. Tínhamos ido repartir os objetos. Quantas antiguidades! Porcelanas, lustres, mesinhas de vidro, telefones, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram parte de nossa história.

Estávamos desajeitados. A ampla sala, palco de muitos encontros, agora desnudada, refletia o abandono. O casarão tinha sido comprado e certamente seria demolido. 

 Sentamos e olhamo-nos como que perguntando por onde começar.  Um tempo silencioso... Marejado de reminiscências. Depois, para quebrar o gelo, iniciamos a partilha. Contingência. Tivemos que nos desfazer do casarão. Era uma satisfação miúda, misturada à melancolia, mas sutilmente afugentada pela satisfação de outras necessidades resolvidas. 

 Enquanto meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei-me de passagens interessantes. Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias povoadas de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas de uma alegria medrosa. Coisas de criança. Buliçosamente entrevi meu passado povoado de recordações...

 Insisti. Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates, doces, pirulitos, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando bila com meus irmãos, brincando de guisado, organizando as peças de teatro. Eu, então, alegrava-me muito ao cantar. Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem bastante espaçosa, com cortina de veludo vermelho, tablado, tudo a que se tinha direito, e convidavam a família. Meus tios elogiavam a atuação dos seus pequenos artistas, alguns meio atrapalhados.  

Como saboreava aquelas tardes compridas que se encontravam com a noite que chegava de mansinho! Recordo-as, nitidamente.  Foram de uma beleza ímpar porque permeadas pela magia dos sonhos e dos folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de corda, andar de bicicleta... Tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai construíra o nosso lar. Ah! Meu pai. Homem inteligente. Personalidade marcante. Sujeito avançado, criativo, lépido e determinado. Seu legado de força influenciaria nossas vidas para sempre. Ele se eternizou em cada um de nós.


            As recordações brotam. Meus 15 anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as primeiras descobertas, o primeiro beijo. 18 anos. As serenatas! Minha mãe, doce criatura, mulher sensível, compartilhava intensamente os nossos devaneios juvenis. Quando voltávamos das tertúlias, abria a porta devagarinho, serenamente, na ponta dos pés, para não acordar meu pai. Em silêncio, ela nos guiava e nos acompanhava para saber das novidades. A ternura espalhada por sua presença, ora sentida, confundia-se com a beleza da noite nascida. Nossa mãe companheira brindou-nos com sua sensatez e com seu carinho. Doce mulher! Matriz de identidade em sua generosidade e amiga de todos. No casarão, no bairro, era conhecida por sua solidariedade, principalmente com os que a ajudavam nas tarefas domésticas.

Na penumbra do quarto, repassei os divertidos finais de semana em companhia dos primos. Eram tantos! Ainda mais os vizinhos, nossos companheiros de algazarra. Jogávamos ping-pong, voleibol, brincávamos de anel, de berlinda, íamos à praia, ao cinema. Que folia! Eram jogos lúdicos e, em especiais momentos, provocadores entre os meninos e as meninas.

Vizinho ao casarão havia o cinema. O conhecido Cinema Atapu. Lembro-me das grandes filas, dos filmes, como: O Ébrio; Tarzan, o Rei das Selvas; Por Quem os Sinos Dobram; Os Três Mosqueteiros; além das famosas sessões de faroeste, dos longas metragens produzidos pela Atlântida, reino de Grande Otelo, Oscarito, Adelaide Chioso e Emilinha Borba. Como me lembro do escurinho do cinema, dos intervalos, dos namoricos!  
Éramos felizes.
Ouvi alguém me chamando:
- Minha irmã, desça, estamos de saída. Era meu irmão mais velho. Senti sua voz trêmula, inconfundível. Ele sempre foi muito emotivo. 
- Já estou indo... respondi um pouco desorientada pelo brusco retorno ao presente.

Fui descendo a escada. Era muito bem cuidada por minha mãe.
Olhei para todos e percebi o quão estavam perturbados. Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos, crianças de outrora, companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.

Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas murmuradas. Rostos entristecidos. Gestos vagarosos.

Chegando a casa fui guardar os objetos, testemunhos silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o casarão, portentosa herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós, inquilinos do passado, pagamos um melancólico tributo pela nossa despedida.

 Nessa noite, quase não dormi.  

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