Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

domingo, 13 de janeiro de 2013

CRÔNICAS DE REGINA BARROS LEAL (Da Academia Cearense da Língua Portuguesa)


A VISITA

Regina Barros Leal

Meio-dia. O sol escaldante. O suor corria a cântaros. Sentada em um barranco, coberto por uma tábua de madeira, esperava o carro que viria me buscar. Naquele dia fui visitar uma amiga que morava num bairro da periferia. Estava doente. Lastimável situação. Ela me parecera tão debilitada e indefesa! Enquanto esperava, recordava a cena anterior. 

Ao chegar à porta de sua casa, bati levemente. Sua irmã atendeu. 

-Olá! O que deseja? Disse, num tom frio e com um olhar desconfiado, abriu a porta deixando-me entrar, já nessas alturas, desconfortada pela seca recepção.

Sua irmã, uns dez anos mais velha, era quem cuidava dela. Denotando   impaciência, ajeitou o avental azul, desbotado pelo uso. Não sei se foi impressão minha, mas achei que seu tom era de alguém irritado, ao dizer-me:

- Entre. Madá está no quarto. Cuidado para não pisar no fio do                 ventilador, alertava, apontando para o chão de cimento esverdeado.
   -  Obrigada, mas onde fica mesmo o quarto? Não conheço a casa,  disse  um pouco constrangida, pelo seu tom de voz.
- Dobre à esquerda logo aí, depois do armário. Falou com frieza. 
O armário a que se referia era  um  pequeno móvel de madeira escura. Chamou-me a atenção pelo detalhe de sua forma. Parecia uma arca antiga já desgastada pelo tempo.

Entrei no quarto. Sombrio. A cortina da janela basculante era  improvisada com um esgarçado lençol azul marinho, usado para evitar a claridade. Um cheiro de éter exalava por todo o aposento, impregnando as paredes, os objetos. Fiquei um pouco tonta. Geralmente odores fortes me incomodam.

-   Oi, Madá! Dirigi-me a ela observando seu semblante pálido, marcado  pela dor.
- Olá! Respondeu fragilmente. Sua voz denotava um tom de desconforto.
- Madá trouxe o retrato da turma, como você pediu. E tirando-o da minha bolsa de couro, fui entregando.

 Para sentar-se na cama, ela fez um esforço que me pareceu gigantesco, em face de sua debilidade física.

 E continuei como se não houvera percebido. 

- Veja, a Laura está grávida do segundo filho. Ela pediu que avisasse   que da próxima vez virá. Dizendo isso, passei minha mão direita em sua cabeça, afagando os seus cabelos, já escassos pela quimioterapia. E ela aceitou placidamente o gesto de ternura.
- Se houver oportunidade, pois estou muito fraca. Minhas pernas já não respondem ao meu comando, e minha cabeça dói continuamente.  E essa dor no peito! Balbuciava baixinho crispando seu semblante, outrora  juvenil.
- Deixa de falar tolice, Madá, repliquei.

Foi quando, olhando mais fixamente, encarou-me  expressando a sua dor e a noção de seu tempo:

- Não me subestime, Márcia. Espero que esta aflição não se alongue. A dor é insuportável!  Não vale a pena sofrer inutilmente. Quisera poder fazer alguma coisa, mas não tenho ânimo. Respirou com dificuldade e continuou:
-     Essa sensação  me deixa perturbada. O jeito é a resignação. E tenho buscado isso na fé. Mas, como você bem sabe, sempre fui muito distraída!

Ao terminar de falar,  suas mãos trêmulas procuravam um copo de água, colocado na mesinha de cabeceira. Pude observar rapidamente que tinha uma caixa de remédios, uma vela de 7 dias, uma Bíblia e a foto que lhe dera.  

De súbito, entra sua irmã. 

- Madá, está na hora da injeção! E num gesto rápido sem que eu  pudesse  perceber, afastou minha mão de sua cama. 
-    Sinto muito, mas é preciso, senão ela não suportará as dores. Você me permite?
- Claro, respondi meio desconcertada. Segurei minha bolsa e fui saindo do quarto.  Foi então  que ouvi sua voz quase inaudível:
- Márcia abrace as meninas por mim. Sinto muito!, Disse, desculpando-se por não poder dispor de mais tempo. Seus olhos marejavam e ela olhou-me como que dizendo adeus.

  Saí. E, carregando a tristeza, sofri profundamente pela inexorável  finitude humana.

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